Ó 

Foto: Haroldo Saboia
São Paulo, 2016 

                             
sinopse

Ó é uma coreografia dirigida por Cristian Duarte criada no contexto da residência artística Lote onde o coreógrafo vem desenvolvendo sua pesquisa em dança desde 2011.

Com o interesse pelo minimalismo na dança e a sensorialidade do movimento, essa criação manifesta a vontade de estabelecer uma dramaturgia tátil através da incessante modulação de percepção e afeto. Na tentativa de se afastar do hemisfério trágico presente na narrativa grega de Orfeu – referência que ancora a criação – o olhar para trás, que o fez supostamente perder Eurídice, tornou-se dispositivo para interrogarmos o tempo enquanto matéria.

É na relação com um modo de vida que compreende o gesto de olhar para trás como movimento de dobra e atualização da experiência, que o trabalho aposta para junto do público compartilhar a construção de um campo de empatia e estabelecer uma dilatação dos sentidos.
sobre a criação

Realizado com subsídio da 17ª Edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, Ó é um trabalho que verticaliza questões coreógraficas que dizem respeito a noção tátil da vida. Orientado em torno do mito de Orfeu mas não só, percebe o chão enquanto matéria prima de afetos coreográficos políticos e urgentes e no rolamento, movimento histórico da dança, crer no encontro e relação entre os corpos.

 

ficha técnica

Produção: Cristian Duarte em companhia e Lote Coreografia e Direção: Cristian Duarte Cocriação e Coprodução: Aline Bonamin, Bruno Levorin, Cristian Duarte, Felipe Stocco e Tom Monteiro Dança: Aline Bonamin e Felipe Stocco Dramaturgia e Assistência de Coreografia: Bruno Levorin Composição Musical: Tom Monteiro Iluminação: André Boll Concepção e Produção de Figurino: Cristian Duarte, Bruno Levorin, Aline Bonamin e Felipe Stocco Consultoria de Figurino: Daniel Lie Vibração: Rafaële Giovanola Provocação: Thiago Granato Fotografia: Haroldo Saboia e Renato Mangolin (P&B) 
Realizado com subsídio da 17ª Edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo. Em cooperação com CocoonDance (Bonn/Alemanha). Em coprodução com Théâtre du Crochetan Monthey, Theater im Ballsaal Bonn. Com o apoio de: Goethe Institut São Paulo, Casa do Povo, Ministerium für Familie, Kinder, Jugend, Kultur und Sport des Landes Nordrhein-Westfalen, Kunststiftung NRW, Bundesstadt Bonn e Théâtre-ProValais, Le Conseil de la Culture Etat du Valais, La Loterie Romande. Apoio/Realização em 2017: Lote#5 em manutenção – contemplado pela 21ª Edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo. 

Producão-Difusão: Carolina Goulart/Cristian Duarte em companhia

Mais informações: http://cristianduarte.net/trabalhos/o/

Vídeo do trabalho na íntegra:
Vídeo: Leo Nabuco
Casa do Povo, 2016




Foto: Haroldo Saboia
São Paulo, 2016


Em uma pequena cidade
Poema escrito especialmente para a peça, impresso em poster distribuído durante a estréia

Bruno Levorin, Fevereiro de 2016.


Não sei ao certo onde estávamos com os pés

e a cabeça

mas pulverizamos o

desejo 

Uma fenda é sempre  

outra fenda

Um duplo gera sempre

outro duplo

Chegamos em um impasse

nascemos sós e morremos sós












Há um turbilhão de sussurros

nos dizendo que

toda possibilidade carrega consigo

algo de impossível

A intimidade abraça a outra

que as vezes é a minha outra

e as vezes não

O íntimo parece não pertencer

Linhas paralelas que co-imaginam

um encontro no infinito distante








 Ó




















Organizamos nossa despossessão

junto do outro que reside em nós

e com o outro que está para fora de nós


Inventamos a alteridade para

praticarmos um circuito de afetos

Olha como o rosto vibra

quando é tocados pelo olhar

Olha como o corpo treme

quando se encontra com outro corpo













Fio que salta

no vazio

Longe

Muito Longe









Foto: Renato Mangolin
São Paulo, 2016


Diário de pesquisa
Pequena seleção de anotações organizadas como se fossem correspondências, que acompanharam o processo dramatúrgico do trabalho.

Bruno Levorin, 2015-2016.

1.


O chão parece ser assunto nessa semana cheia de deliciosas degustações. E esse chão não é apenas vertical. Sinto o cheiro cozido por todos nós de um solo que se emancipa espacialmente inteiro e íntegro. Nos esfregamos em um chão que nos ocupa todo, da cabeça aos pés, em todas as dimensões. As quatro dimensões são completamente pisoteadas e excitadas pela nossa vontade de produzir pó. A excitação aparece para nós como movimento.

Há, nesse acesso, toda uma calma mágica, que faz da performatividade e do tônus um ser-lagarta, uma ameba, a possessão de algo menor, nada importante. Ser possuído por algo que não tem importância é trocar os signos pelas coisas, é ser capturado e capturar uma sensação de matéria quebrada, de brinquedo que não funciona, todavia continua

quente. Digo alto para o povo, e escrevo no muro: O calor não pode esvair-se das coisas!

Então tocamos e assim somos mundo, um organismo que aprende rápido. O toque não é manipulação, não é contato-improvisação. É volume. Na música, em teclas sensíveis de alguns sintetizadores ou em pianos antigos, a pressão do toque gera diferentes volumes - gosto de pensar a ideia de volume associada ao conceito de pressão.

As palavras dessa tátil percepção estão em desvio, na mudança de ideia, no agarrar, bifurcar, olhar, torcer, no Lindy Hop e Zabriskie Point, no meu organismo que é grande e por isso não cabe direito aqui, em Nuno Ramos, que diz estar nos mais preciosos materiais, os menos duráveis e dos quais nos livramos rapidamente.

Sobre a esfera pública, como diz Deleuze, a mitologia torna a ciência mais animada. Não vejo círculo, não vejo roda, vejo ilha. Ilha oceânica. Dessa maneira, me despeço citando “causas e razões das ilhas desertas”, manuscritos de Deleuze dos anos 50.

As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexá- las.


2.

Temos tempo para perceber. Isso significa insistir nos materiais que não nos conduzem somente para os seus efeitos mais imediatos, todavia estabelecem conosco uma relação de mudança da perspectiva estética, cognitiva e tátil. O anseio de assertividade é um fantasma que o tempo todo temos que enxergar, para assim encontrarmos caminhos de afetividade disponíveis para vibrá-lo. Essa é a hora de desafiarmos os materiais, experimentá-los, experienciá-los. E aqui deixo Jorge Larrosa Bondía falar:

“Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial."

O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im- posição” (nossa maneira de impormos), nem a “pro- posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex- posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.”

A roda, ou ilha, nos colocou em relação. Para além da arquitetura, ela construiu a sensação de público em todos nós. Iniciar o projeto nos defrontando com a observação

do outro que se move, o outro que, na ilha, multiplica o espaço do olhar do outro que assiste, e que vê e regenera a nossa vontade de aprender mais sobre o mundo é, independente do futuro disto, estarmos na terra submersa, comprometidos com a lógica do espaço que cria mitologias e desconcerta o nosso ser histórico. Lembro de uma citação de Nietzsche que chega a sugerir que deveríamos evitar a história em benefício do mito, pelo fato deste criar um sentimento de comunhão. Vou me afundar neste texto e quem sabe na semana que vem encontro mais pistas.

O chão é o movimento perpétuo, acariciante e ameaçador. Do chão nasce onda, poema-rio, maré que sobe. Nele, as coisas derramam. Há, na produção do que escapa, um deslocamento que estabelece o mais próximo e o mais distante com a paciência de um bicho. Animal que entende, no ato de olhar, o perder-se diante de algo junto com alguém. Olhar já é em si abrir-se para o mundo em dois, em duas cavidades.

Tocar o outro com o olhar. Essa é a dificuldade do mundo que estabeleceu, ao ato de ver, a ideia de que este gesto não nos presta senão para provar a existência de algo. Todavia, para nós que estamos distantes da prova e próximos da sensação, o olhar não só é poderosa forma de experienciar o que está fora, como também nos percebermos enquanto fora. Conectando-nos ao movimento de zoom in/ zoom out, proximidade e distância, saboreando as coisas e pessoas que se esfregam em nossa ação.

Por fim, me encantei com uma palavra. Ela se chama Diáfano. Não sei se presta, mas gosto de sacudir minha intuição. Ela significa transparência que possibilita a passagem da luz através da massa compacta. Isso é o olho?