Imagem: Still retirado do clipe Alô alô Marciano de Elis Regina (1980)



  Imagem: índice do livro Onde aterrar? Como se orientar politicamente no antropoceno de Bruno Latour.


Noções de coreografia e dança enquanto campo expandido.

Janeiro, 2021

Originalmente, esse texto foi produzido como fio condutor de uma fala realizada através das redes sociais, a convite do Grupo Meio, no dia 18 de janeiro de 2021.

A música "Alô alô marciano" foi lançada em 1980 no disco "Saudade do Brasil" de Elis Regina. A composição é de Rita Lee e Roberto de Carvalho, que nos anos 70 estavam no exílio e foram convidados pela cantora a escreverem uma música para o que seria então seu novo álbum. Vale lembrar que Elis e Rita se aproximaram quando a última foi presa grávida durante a Ditadura, e por decorrência do trauma e violência vividos na prisão, acabou perdendo a criança. Elis Regina foi a única artista a visitar Rita no cárcere.


O videoclipe da música teve lançamento no Fantástico como primeiro single do disco e possui uma performatividade e estrutura dramática que merece ser descrita e analisada. Por sinal, essa mesma performatividade percorre todo o disco, que originalmente foi concebido como um espetáculo, com estréia na época no Canecão, antiga e popular casa de shows do Rio de Janeiro, e somente depois gravado em estúdio.


No clipe, Elis começa falando em um telefone extravagante, desses clássicos de discar dos anos 80, enquanto escutamos o instrumental de introdução da música tocar de fundo. Em um quarto com uma cama também extravagante, a cantora conversa com alguém neste telefone que, ao que sugere a canção, seja o tal marciano. No mesmo quadro e quarto, quando a voz de Elis aparece na música, nos deparamos com a presença de duas Elis Reginas que contracenam entre si. No clipe existe uma Elis que atua e outra que comenta tudo que acontece com expressões e gestos, diga-se de passagem bem debochados, além é claro de cantarolar a canção.


Durante todo o vídeo Elis contracena com esse seu duplo, alimentando uma espécie de diálogo narcísico, estabelecendo um parâmetro crítico desse personagem elitista e de seu contexto, expondo contradições e privilégios que, imagino eu, a própria cantora possuía na época. É de amplo conhecimento a consciência de classe que Elis tinha. Em muitas entrevistas é possível ver a cantora argumentando sobre a indústria musical e os problemas políticos que impossibilitaram com que a cultura fosse compreendida como gesto de conscientização e os artistas entendidos como trabalhadores. 


Em um determinado momento, Elis, muito elegante, em um restaurante chique, se depara com um prato feito, um PF que mastiga de maneira desgostosa mas fingindo luxo e riqueza. E aqui é onde sinto vontade de dar o meu primeiro mergulho para tratar de duas palavras que estão em evidência na pergunta realizada pelo grupo meio, que orientou essa meu texto. Essas palavras são, coreografia e expansão.


Em 1980 o Brasil vivia um amplo afrancesamento de sua gastronomia. Nos grandes centros urbanos eram raros os casos de famílias que saiam de casa para comerem fora, pois as refeições eram muito caras e por assim, esse comportamento acabava por definir a classe social dessas pessoas. Quando isso acontecia, comer fora, significava ir a restaurantes e hotéis que na época, ofereciam a alta gastronomia francesa que definia a identidade burguesa de um país colonizado por excelência.


A gastronomia "oficial" brasileira e principalmente a paulista foi construída, assim como grande parte da produção imagética "oficial" da cultura nacional, enquanto metáfora da união romantizada dos povos que formam a nossa identidade - o índio, o negro e o branco. Essa união "pacífica", como muitos aqui devem saber, tem como marco teórico o livro de Gilberto Freyre, Casa Grande & senzala, publicado pela primeira vez em 1933. A contribuição de Gilberto Freyre para os estudos da escravatura brasileira é inegável, todavia é consenso entre muitos intelectuais que, a sua tese sobre a suposta miscigenação pacífica, deve ser compreendida como um equívoco político de sua obra. Uma pequena anedota sobre o livro, pois ele é para mim um marco dentro dos meus estudos - em sua primeira edição, Casa grande & senzala foi ilustrado por Cícero Dias, pintor pernambucano falecido em 2003, que conheci graças ao livro e que alimento profunda admiração pictórica. Vale, a quem se interessar, buscar esses mapas pintados por Cícero para ilustrar o funcionamento do sistema escravocrata dentro das fazendas coloniais do século passado. 


Voltando ao assunto comida, parte disso que chamamos de "prato feito"- arroz, feijão, bife, ovo e farofa e outros pratos como o "virado à paulista", foram construídos como sistemas simbólicos de associação, dentro do frame prato, como atenuante representacional da corrida de violência bandeirante de expansão territorial, dominação de um grupo racial sobre o outro, desenhando e tornando a "mistura", um conceito de interrupção - uma tentativa de suavizar um dos momentos mais autoritários da nossa história.


Fora isso, cabe também salientar que, a população negra escravizada, população essa que passou mais de 100 anos nas cozinhas das casas grandes, cozinhando para as famílias brancas escravocratas, nunca pode escolher de fato o que comer. A nutrição dessa população sempre estava condicionada a noção de trabalho e sobrevivência. Por isso, sobre as histórias desses pratos típicos também está circunscrito uma noção nutricional que foi pautada e construída sem a escolha daqueles que estavam na base da força de trabalho para o feitio dos mesmos.


Bem, vocês devem ter notado que utilizo a palavra expansão, em um determinado momento do texto, quando cito os bandeirantes, e os defino aqui, a partir de um salto historiográfico que assumo perigoso mas provocativo, como proto-milicianos, homens que com a proteção do estado e agentes de um projeto de mundo, cometiam crimes e enriqueciam às custas da violência e do genocídio de populações indígenas e negras.


Palavras são coisas, verbos são coisas, e por isso elas possuem história e memória. Com a palavra expansão não é diferente. Se pesquisarmos rapidamente na nossa enciclopédia dos novos tempos, o google, encontraremos associado a busca dessa palavra, primeiramente, as expansões marítimas europeias rumo a Ásia, África, Índia e Américas. É evidente que isso seja um sintoma para que nós possamos nos demorar mais sobre esse problema voltado à ideia de expansão.


A ideia de expansão traz consigo, necessariamente, a noção de um centro. Um centro geográfico, um centro epistemológico, um centro simbólico e representacional. É do centro para a chamada periferia do mundo que se faz o movimento de expansão. Claro que pensar isso em termos e tempos biopolíticos, onde a colonialidade do ser, para citar Maldonado-Torres, forma como trabalho, conhecimento, autoridade e relações intersubjetivas se articulam, por meio do mercado capitalista mundial e da ideia de raça, torna mais difícil para nós o reconhecimento preciso desse centro irradiador e desejante de expansão.      


É curioso como a expansão gerou outros dois conceitos para a nossa história tão autoritários quanto. Junto dela, nasceram as noções de progresso e de modernidade. Esses dois conceitos são fundamentais para pensarmos a construção do positivismo colonial e, não sei se vocês já conseguiram reparar mas, em todos eles, a noção de movimento é fundamental. E não é qualquer movimento. É uma marcha, um ritmo maquínico de apagamento e uma vontade feroz daquilo que se popularizou chamar de renovação.


Dentro desse calabouço chamado renovação, bem rapidamente, podemos somar uma outra palavra e conceito criada no século XX, chamada higienismo e aqui, só para dar um gosto, faço uma breve citação de um texto de Lima Barreto, lançado em 1920 chamado "Aos Hegienistas". Nesse texto Lima abre um diálogo crítico com o sanitarista da época Carlos Chagas, criticando a maneira como o cientista coordenava a campanha contra a tuberculose na cidade do Rio de Janeiro. O texto merece ser visto com minúcia mas, a crítica ali construída pelo intelectual negro anarquista está direcionada ao apagamento do contexto socioeconomico da população frente aos problemas de saúde pública, coisa que as autoridades da época não tinham o menor interesse, e ao pensamento científico eugenista que se pensava na função de explicar e corrigir as "imperfeições" da sociedade considerada até em tão suja. Vale lembrar que esse fenômeno estava intrinsecamente vinculado à modernização urbana da cidade do Rio de Janeiro impulsionada por Pereira Passos no início do século, novamente como tentativa de afrancesamento da cidade carioca.


Enfim, parece muita coisa. Mas para ajudar fiquemos com essas três palavras:       



EXPANSÃO - PROGRESSO - MODERNIDADE



Saltemos para a coreografia e um breve histórico….


A palavra coreografia surge pela primeira vez na história em 1700 na França, quando Raoul-Auger Feuillet pública Coreografia ou a arte de escrever a dança. Feuillet em seu livro, interessado por um método de escrita para organizar as danças dos salões, desenvolve todo um pensamento sobre a possibilidade de estabelecermos esses fenômenos gestuais dentro do que ele chamou de quadrado branco. Compreendendo o chão como um suporte de escrita de passos no espaço, um chão liso, vazio e chato como irá salientar André Lepecki em seu texto Planos de Composição, Feuillet organizou todo um sistema de visibilidade de corpos em um espaço, diga-se de passagem privilegiado.


Avancemos alguns anos até o nosso território.


Quando a Coroa portuguesa desembarca no Brasil em 22 de janeiro de 1808, o processo de colonização se aprofunda no território, e uma das ferramentas usadas para adestrar, separar e classificar os corpos e os sentidos foi justamente a coreografia. Era sobre as festividades mas não só, que a dança e o pensamento coreográfico se aprofundaram na sociedade Brasileira da época. Primeiro, os corpos eram divididos em três tipos: corpo social, corpo místico e corpo político. Cada um desses corpos, sociedade civil branca, igreja e coroa, tinham funções e coreografias específicas nos salões. Isso obviamente ia para além do momento das festividades e aos poucos se irradiava substancialmente dentro dos regimes de convivência diária da população, circunscrevendo uma distinção social importante para manutenção dos poderes que estavam, naquele momento, se instaurando. Possivelmente, a primeira memória coreográfica que temos da ideia e conceito de representação esteja vinculada a noção de soberania. Todos os símbolos, imagens, acordos e gestos estavam, na sua produção de presença, voltados para a afirmação de uma sociedade dividida entre governantes e governados, colonizados e colonizadores. Para isso se fabricavam roupas, por isso se produziam teatros, para isso se organizavam modos de caminhar, comer, comprimentar, segregar, escravizar e agradecer, assim que possível o bom senhor, com o bom e velho "muito obrigado".  Quem diz obrigado está dizendo que o favor recebido está sendo colocado em estado de contrato: tenho a obrigação de retribuir. O favor se transforma em comércio.  É assim que na linguagem e no corpo que se inicia o capitalismo no Novo Mundo.


Conforme cita Renata de Lima Conde em seu artigo Corpo, sentidos e coreografias: narrativas de uma festividade na Bahia do século XVIII, na cultura barroca o objetivo da representação é fazer com que os observadores sejam por ela envolvidos e percebam, sintam e entendam o que está sendo representado. Além disso, a representação deve poder ser guardada na memória. Esses efeitos são obtidos provocando a imaginação dos espectadores, de modo a formarem uma imagem interior da realidade representada. O meio para atingir a imaginação é a solicitação dos afetos (conformação afetiva).


Ou seja, faz parte da palavra coreografia uma história higienista, policiando a partir de manuais de etiqueta barroca, por exemplo, um modo de agir e pensar socialmente o mundo no Brasil. Isso está gravado em nossos corpos, isso dividiu o que dentro de um país se considerou cultura e o que não, isso fez parte e é fundamento da formação de uma elite nacional escravocrata.


É claro que nas quizumbas, nos cortiços, na marginalidade, a coreografia e a dança se organizaram a partir de outros modos de ser e estar no mundo. Não à toa, no século XX, toda a intelectualidade branca decidiu, depois de ver que sua produção de conhecimento era limitada e limitante, olhar e saquear esse conhecimento vindo das populações nativas e diaspóricas. Isso aconteceu com o Jazz por exemplo e aqui volto ao clipe de Elis Regina.


Se analisarmos o arranjo musical de Alô alô marciano, iremos reparar que ele está a todo momento citando o Jazz, seja na sua orquestração brilhantemente dirigida por César Camargo Mariano, seja nos trejeitos que Elis, ironicamente imprime em sua interpretação, chegando mesmo a citar, vocalmente, Louis Armstrong. Logo depois da cena em que a Elis High society está comendo seu prato feito, a outra Elis que debocha, faz um comentário baixo mas audível na gravação: "Ai, que chique é o jazz". O que Elis quer nos dizer aqui é justamente sobre a apropriação que foi feita desse movimento nascido e criado pelas populações pretas e diaspóricas do mundo pela tal High society. Uma anedota - muitos pesquisadores consideram, enquanto registro fonográfico, os primeiros discos de jazz aqueles gravados por Pixinguinha no início do século XX.

 

Mas o que quero dizer com tudo isso que contextualizo? Será mesmo que queremos pensar, imaginar e produzir conhecimento sobre um campo expandido coreográfico? será que buscamos nesse desejo o vetor expansionista que marcou nossas epistemologias brancas? Será mesmo que essas são as melhores palavras para descrever um sentimento de vontade de saber a partir da gestualidade, que deseja atravessar fronteiras de linguagem mas que tem na sua base a noção de encontro e proporcionalidade? E um campo diaspórico? E um campo fugitivo? E um campo de livre associação mas com responsabilidade política ancestral e um plano extenso, político e ético de ressarcimento simbólico e financeiro a todas essas populações que tiveram seus conhecimentos aniquilados e/ou furtados?


O futuro, para mim, está na história e é com ela que vamos transformar os nossos paradigmas. Obviamente que o passado não pode paralisar o futuro, mas ele deve nos conscientizar para compreendermos que futuro queremos construir.


Enfim, deixo essas questões para continuarmos a conversa e torço, voltando para Elis, que a High society esteja nesse momento, mais do que nunca, down, down e down. Talvez, para nós brancos, esteja mesmo na hora de criarmos um campo de introspecção coreográfica e não expansão e experimentarmos um pouco a gestão de sofrimento que nós inventamos nas nossas próprias peles.


Referências Bibliográficas:

CONDE, Renata de Lima; MASSIMI, Marina: Corpo, sentidos e coreografias: narrativas de uma festividade na Bahia do século XVIII - Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

DÓRIA, Carlos Alberto:Formação da Culinária Brasileira. Escritos sobre cozinha inzoneira - São Paulo: Três Estrelas, 2014

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 42. ed. Rio de. Janeiro: Record, 2001. FUNARI

LEPECKI, Andre: Planos de Composição - Catálogo Rumos Dança Itaú Cultural, São Paulo - 2009/2010

NETO, Antonio Gomes da Costa: A denúncia de Cesáire ao pensamento decolonial - Revista EIXO, Brasília – DF, v. 5, n. 2, julho-dezembro de 2016

SCHWARCZ, L. M: Lima Barreto: termômetro nervoso de uma frágil república. In: LIMA BARRETO, A. H. de. Contos completos. Org. e Intr. Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.





Ilustração: Luan Banzai

O futuro é uma dança sem nós

[desejos para a desaparição da branquitude]1


por Bruno Levorin e Ignacio de Antônio

Julho 2020


Este texto foi produzido a partir do convite do espaço de residência Graner em Barcelona e publicado em um periódico local da instituição. Em 2021 o texto também foi publicado na quarta edição da revista Coréia, dirigida por João dos Santos martins e editada em Lisboa, Portugal. Originalmente o texto é bilinguê - português/espanho - todavia aqui, para facilitar a leitura foi escolhido estar apenas em português.



Caro leitor. Não leia. Caro leitor. Baile. Siga pelas margens que estamos propondo, confiando no sentido da água que plantamos.

A dança mudou de nome três vezes desde a crise, assim como ameaçou fazer a fotografia quando deixou de escanteio a daguerreotipia2 no início do século XX. Nos anos 1950, quando a foto doméstica e de consumo se tornam populares, a máquina passa a ser do tamanho das mãos e deixa de ser do tamanho de cabeças.


Chegamos ao século XXI. Somos um coro apocalíptico motivado pela ascensão das câmeras digitais, iphones, xiaomis e galaxies em livre concorrência viral e supreme atenção a cada print de um story qualquer.


Aconteceu com a televisão, filmes, séries, computadores, telas, tudo isso matou o rádio. Embora historicamente estejamos vivendo o momento em que mais pessoas saibam ler e escrever e dedicam mais tempo a essas tarefas, livros e bibliotecas públicas ou privadas estão fadadas ao vazio, ao desaparecimento da presença humana.


Recebemos constantemente mensagens, escrevemos outras. Os idiomas escritos e lidos possuem a plasticidade típica da oralidade. São encurtados, interpretados, misturados com figuras, memes. O pensamento não está nas páginas brancas e nas letras pretas, não está nos milhões de PDFs nem na literatura. Novos códigos são estabelecidos em um fundo de tela que, caso enfeitiçada, racha a película.


Com a democratização dos telefones móveis, a produção de imagens, textos e histórias excede e supera o fim das coisas. E falando sobre a dança, o palco, ao que fazemos e onde criamos sentido – o que mesmo aconteceu com o teatro, as caixas-pretas, desde a pandemia de 2020 até hoje, 2040? A dança é mais dança do que nunca, seguindo suas epistemologias mais radicais, seus vocabulários mais disruptivos e sem nós, coreógrafos brancos. A dança está para além dos dispositivos de representação onde estava inserida, onde nós a inserimos.


É bom lembrar que a dança está no mundo sem ser chamada de dança há algum tempo histórico que antecede e supera a Europa. A França Imperial decidiu dar nome a mover-se de um lado para o outro como danse. Nunca souberam dançar de fato. Já em roubar e sequestrar foram especialistas. Ao acordar e dormir, ao caminhar e gesticular, com mãos e bocas, palavras e pensamentos, ao comer, se vestir, o que inclui desnudar-se, sudacamente3 se dança. Na ancestralidade que as nossas ancestralidades brancas tentaram apagar, a dança está para curar, para comemorar a passagem das estações, para exaltar a vida em comunidade, para amar e guerrear com respeito, para ninar e fazer futuro. Ela assim permanece em alguns territórios que resistem cotidianamente às coreopolícias4, onde a palavra polícia e estado não existem nas línguas originárias. Já no hemisfério norte, que carrega em suas costas centenas de anos de homicídios cometidos por uma gama complexa de vírus epistemológicos e terrorismos de estado – a palavra terror é inaugurada na dita política institucional na França de 1793, quando jacobinos decidiram guilhotinar milhares de franceses naquela revolução burguesa –, a dança tornou-se um pacto de manutenção de poder das elites brancas e pensamento para mover exércitos coloniais. Sim, o mesmo povo que inventou a palavra danse, inventou também a palavra terror5 e uniu as duas em uma etiqueta barroca6 de excelência.


Não era necessário conhecer o coreógrafo estadunidense Steve Paxton para sabermos que o corpo pedestre é um ente coreográfico7. Bastava irmos a um festival de dança, performance, teatro, música e cinema circunscritos pelas suas especificidades raciais, geográficas e sociais para encontrarmos essa compreensão corpórea que parte de outras formas de fazer e pensar. Mas esse regime de inclusão excludente, que aconteceu com frequência durante algumas centenas de anos nos circuitos artísticos, onde existiam contextos brancos que se compreendiam como norma e universais, “pertencentes” do direito de falarem sobre o mundo, a humanidade, a abstração, o inaugural e qualquer outra coisa que sintam vontade, sustentados e mantidos pelos outros contextos que eram circunscritos naquilo que nós nomeamos como específicos, não nos permitiu encontrar as genealogias dos conhecimentos e pensamentos sobre as histórias “pedestres”.


Nos terreiros de candomblé sempre há pensamento em dança, ao contrário de igrejas onde, no máximo, pode-se encontrar os famosos “dois passos para lá e dois para cá”, com culpa e joelhos no chão. Nas manifestações que lutam por melhores direitos dos trabalhadores, a ação direta exige dançar. No compartilhamento do verbo comer em restaurantes populares erguidos por imigrantes em todas as partes do mundo, não existe mastigar sem gesticular com mãos e garganta. Tudo isso para dizer que foi nas ruas e nessas comunidades que foram subjugadas a partir de suas especificidades que os dispositivos arquitetônicos de representação mais efetivos da dança insurgiram. Tudo isso para dizer que a dança viveu e vive sob a emancipação das políticas da vida e não da morte e do controle.


Em 2020, a dança branca se esgotou. A premissa de que vivíamos sob uma prática e um contexto de dança contemporânea supostamente democrática ruiu. John Maynard Keynes, o estado de bem-estar social, toda a ideia de um capitalismo “feliz” durou o tempo necessário para que as elites wannabe Dinamarca voltassem a ser o que sempre foram, totalitárias, brancas e medíocres. Ficou evidente com a pandemia que as danças somáticas, por exemplo, tornaram-se resquícios radicais dos privilégios brancos, tratando apenas dos “traumas” que esses corpos não racializados desenvolveram para permanecerem vivos em seus berços de ouro e prata, inca e maia8. Sem contar que, na crise da Covid-19, enquanto artistas brancos decidiram se especializar em yoga, os artistas pretos e racializados permaneceram na resistência e, como sempre, em uma vida dupla para sustentar suas famílias, estavam também nos chamados serviços essenciais, muitos deles em ambientes que marcam o corpo e reduzem a média de vida sem tempo e direito a eutonia, pilates, rolfing e/ou feldenkrais.


A universalidade da dança cantada por Isadora Duncan ajudou a inaugurar no ocidente o American way of life9. Depois disso, nem a pós-modernidade foi capaz de abrir mão da sua antropocentricidade branca. Foi doença e desespero ao ver, dia após dia, corpos negros e racializados serem assassinados e, voltando então às câmeras, filmados com os aparelhos celulares, que fez com que a nossa dança branca começasse a discutir vida, raça e entendesse a necessidade de sua própria desaparição enquanto projeto.


Mas não foi assim fácil. Afinal, entender o nosso próprio desaparecimento exige um movimento analítico intenso. Houve artistas no mercado europeu que decidiram colocar nos palcos aquilo que compreendiam esteticamente enquanto “marginal”. É interessante analisarmos essa necessidade “crítica” de afirmar nosso antirracismo e decolonialidade na medida pública do espetáculo. É uma característica estudada no âmbito da psicologia social racial esse comportamento da branquitude de nem sempre, sobre aquilo que aprova e desaprova publicamente, ratificá-lo no seu espaço privado10. Enfim, a culpa é sintoma, já a responsabilidade é falta11.


Em 2020, nos dizíamos aliados das causas raciais e decoloniais e pensávamos que a representação resolveria os problemas de distribuição. Demorou para entendermos que os teatros onde estávamos nos apresentando e os circuitos em que estávamos inseridos na Europa faziam magicamente com que essa tal “marginalidade” se transformasse em fetiche, norma, exotização, tendência e notas de desculpa branca em forma de aplauso triplo.


Mas não para por aí. O último suspiro branco veio daquilo apelidado de idealização do precário12. E se em vez de artistas fôssemos pedreiros? Acordamos cedo e vamos ao nosso trabalho representados por uma empresa terceirizada. Ela nos diz que não conseguiu arrumar os materiais e ferramentas básicas para se trabalhar nem equipamentos de proteção. Todavia, justificam que ali no terreno, no meio da sujeira planificada onde nasceria mais um horrível edifício, era possível encontrar algumas coisas e criar de forma improvisada esses equipamentos ausentes. Garanto que se fôssemos nós, artistas brancos em dada situação, hipnotizados pela idealização do precário13, e por amor tóxico, acharíamos lindo a nossa “potência” criativa em levantar um prédio todo usando dois palitos e um pedaço de arame. Sem contar que, se vivos saíssemos dessa situação, em nossas mãos estaria um prêmio chamado: a meritocracia dos “fudidos” com herança S, M, L e/ou XL.


E se fôssemos, em 2021, o ápice do neoliberalismo?


Oxalá


A palavra futurum vem do particípio do verbo sum, esse. Digamos que futuro seja no étimo latino um tridente14 formado por: aquilo que teria sido/estado presente na experiência mas que não se cumpriu, o que é/está na potência de qualquer ato no presente e naquilo que pode vir a ser/será enquanto possibilidade. É um espectro entre o que teria sido, o ser, o que haverá de ser e o devir, o que pode vir a ser. Evidente que o futuro percebido em nossa branca tradição cultural – quero dizer a católica, monoteísta e transcendental – é um ponteiro que segue por uma única direção, o que costumamos chamar de progresso.

O presente é impossível? Nossa própria capacidade de entender nós mesmos no mundo nos leva a colocar tudo no passado e projetar o possível nas condições de um futuro mais ou menos imediato. A dança que existe fora do projeto da branquitude, material de pensamento e ação, lugar de afetos, problematiza isso e reivindica sua condição presencial. A capacidade de fazer, produzir movimentos, mover-se junto das coisas são questões que habitam a impossibilidade e o desejo do presente em seu potencial político. Portanto, esta dança – e talvez a coreografia – sejam lugares onde podemos realizar as nossas dobras e encararmos de frente as nossas contradições a partir de suas escutas.


O futuro é um constante movimento para os lados, uma aceleração contínua da qual participamos como partículas expansivas em nível microscópico. Ele não é frente e também não é costas. É pó, bando e multidão. O futuro, para nós brancos, é um desaparecimento constante de nós, é deixar de ser junto do tempo para com ele extinguir a disseminação das nossas violências. A dança, não a danse, é o campo de excelência dessa nossa própria extinção enquanto projeto. Instituir a presença para além dos nossos campos de visibilidade pode nos ajudar a barrar as noções de reprodução do capitalismo e desarticular suas hierarquias dessas práticas. Essa ausência pode começar por gerar uma dança branca menor. Uma dança produzida a partir do tátil e de seus próprios limites críticos, um caminho que nos permita ampliar a nossa consciência e potencial político crítico para verticalizar uma conduta ética com tudo que ainda produzimos no mundo.


O futuro é um conjunto de ancestrais que foram mortos por nós e ressuscitaram mais fortes. Negando todo e qualquer tipo de extrativismo, essas entidades protegem um oceano de céu e terra, sustentam e ampliam seus conhecimentos sobre a vida e brincam fazendo piada sobre nós e nossos complexos de salvação. O futuro é um conjunto de aldeias que riem da civilização dançando seus problemas e alegrias.


No futuro não há polícia. No futuro há política.


Oxalá, há mundo e dança sem nós por vir.

Notas:


1.    Tratamos aqui da branquitude como um conceito e um projeto ideológico. Para evidenciar nosso ponto de vista, incluímos nesta nota um quadro de 8 tópicos sobre a branquitude, apresentados por Frankenberg (2004):

  1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial.
  2. A branquitude é um "ponto de vista", um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais
  3. A branquitude é um locus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, mas muitas vezes não marcadas e não denominadas como nacionais ou "normativas", em vez de especificativamente raciais.
  4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.
  5. Muitas vezes, a inclusão na categoria "branco" é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteiras da própria categoria.
  6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas modulam ou modificam.
  7. Branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
  8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos.


FRANKENBERG, Ruth. “A miragem de uma branquidade não-marcada”. In: WARE, Vron (org.). Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, pp. 307-338.


2.    Primeiro processo fotográfico a ser comercializado com o grande público nos fins do século XIX.

3.    Expressão pejorativa usada na Espanha para identificar e racializar imigrantes latino-americanos que vivem em território ibérico. 

4.    Conceito elaborado por André Lepecki que compreende coreografia como um lugar para refletirmos as produções de poder e discursos entre as noções estéticas e políticas, nos dá o entendimento, de forma não metafórica mas material, dos modos de agir e pensar dos estados autoritários e da capilarização de seus dispositivos biopolíticos.

LEPECKI, André. “Choreopolice and Choreopolitics: Or, the Task of the Dancer.” TDR/The Drama Review 57 (4): 13–27, 2013.

5.    Ver RABBELO, Aline Louro de Souza e Silva. O conceito de terrorismo nos jornais americanos: uma análise do New York Times e do Washington Post logo após os atentados de 11 de setembro. Rio de Janeiro: 2006, pp. 20-21.

6.    Ver J.L. ROQUETTE, Código do Bom-tom, ou, Regras de civilidade e de bem... São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Publicado originalmente em 1845, teve como objetivo normatizar a vida cotidiana dos brasileiros, "orientando-os" nas suas condutas pessoais e educação gestual. A referência para tais modos eram importadas das nobrezas europeias. A dança dos salões teve um importante papel na manutenção desta ética perversa servindo como ferramenta de educação e contorno colonial.

7.    O que está em jogo nessa afirmação que fazemos no texto é: até quando teremos a dança estadunidense branca como referência para a nossa produção de conhecimento? Onde está a literatura, a história e sua devida distribuição para o mundo dos outros intelectuais, bailarinos e artistas do outro hemisfério que trabalham sobre esses conceitos e práticas no mesmo tempo histórico e até mesmo um tempo anterior ao de Steve? Como diz o artista plástico brasileiro Traplev em recente obra exposta na cidade de Salvador, O segredo do futuro tá na história. Sendo assim, se há vontade de pensar no futuro, temos que antes repensar e entender que histórias estamos insistindo em contar. 

8.    Ficção inspirada pela plataforma Contemporary dance and whiteness: http://danceandwhiteness.coventry.ac.uk/, núcleo de pesquisa situado em Londres, coordenado pelas investigadoras Royona Mitra, Arabella Stanger e Simon Ellis.

9.    No capítulo 3, America Makes Me Sick!’’: Nationalism, Race, Gender, and Hysteria, A. Hewitt debate sobre a relação entre a propositiva afirmação gestual de Duncan, produto da ideia de liberdade dos corpos em estado natural de movimento. O autor organiza a importância que a performatividade dos corpos teve para a produção de linguagem e identidade americana no começo do séc XX. “America is not only the medium for the realization of humanity: humanity is the medium for the realization of America.” HEWITT, Andrew. Social Choreography: Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement. Durham/Londres: Duke University Press, 2005, p. 124.

10.    Ver CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista. Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv [online], 2010, vol.8, n.1, pp. 607-630.

11.    Vale lembrar como a noção de liberdade nos séculos XVII e XVIII, conceito elaborado e discutido pelo Iluminismo europeu, apresentava-se como eixo fundante daquilo que os filósofos da época organizavam por “humanidade”. Humanidade esta que exclui todas as relações escravocratas estabelecidas nas colônias s. (DABYDEEN, David. Hoggarth’s blacks: images of blacks in eighteenth‐century English art. Athens: University of Georgia Press, 1987 [1985], pp. 21‐23).

12.    “O capitalismo artista tem de característico o fato de que cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento." (LIPOVETSKY, Jean Serry, A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 43).

13.    O trabalho hiperflexível e a precariedade têm invadido a dança dentro e fora dos palcos, onde cada um é empreendedor de si, um investidor de seu próprio capital simbólico. Ver KUNST, Bojana. Artist at Work, Proximity of Art and Capitalism. Charlotte: Zero Books, 2015, p. 141.

14.    Pedimos licença para a produção de uma relação simbólica entre Exu, orixá da comunicação, porta-voz entre nós e os deuses no candomblé, e a concepção de tempo que estamos desenvolvendo no texto. Ver PRANDI, Reginaldo. “Exu, de mensageiro a diabo. Sincretismo católico e demonização do orixá Exu.” Revista Usp n.50, p. 46-63, junho/agosto de 2001.






Fragmento

Fevereiro, 2018

Aquela parte que pode convocar o todo mas não só. Pode multiplicá-lo, tornar esse todo desviante, fazê-lo fora do ideal de objetivo. Quintana diria: "Os espelhos partidos tem muito mais luas". O poeta sussurra que tudo aquilo que antes nos traria azar, a quebra da representação, agora nos dá sorte, pois com ela podemos ver o satélite se tornar vários. Um "delírio acidente" que possibilita uma imensa conectividade com o acaso, com a vida, possibilidade de parentesco com o que gosta de seguir e continuar vivo. Conatus.

O fragmento coloca em movimento as imagens. E por ser parte, se posiciona a parte da vontade de ser completo. Sua política é a favor da autonomia e do federalismo, assim como Proudhon, desejando estar só e em bando ao mesmo tempo. Cada caco um formato, um recorte, uma vida. Em cada pedaço a potência de uma fronteira líquida, uma cachoeira.

Tenho tentado evitar a noção de fronteira e substituí-la por queda de água. Descobri recentemente que há uma espécie de peixe, comum no Havaí, da espécie Sicyopterus Stimpsoni, que escala cachoeiras de até 100 metros.

Em 2011 os artistas Guillermo Faivovich e Nicholas Goldberg encontraram, em um museu no Norte da Argentina, El Taco, um fragmento de um meteorito estranhamente cortado. Apaixonados pela peça, decidiram se perguntar sobre onde estava a outra parte. Buscaram e acharam. Ela estava em outro continente, nos Estados Unidos da América, e foi levada pelo físico americano Bill Cassedy, um apaixonado por meteoritos que, logo que o objeto foi encontrado na Argentina nos anos 60, com a ajuda da marinha local, dicidiu transporta-lo para o seu laboratório e estuda-lo com mais cuidado.

Com a ajuda do Museu de Frankfurt, Faivovich e Goldberg conseguiram unir as duas peças que ficaram expostas durante 3 anos na instituição Alemanha. A história por sí só já encanta, mas o vazio que os artistas decidiram criar entre uma pedra e outra, a maneira que decidiram expo-lás é o que chama a nossa atenção. Ao organizarem assim a curiosa história, criaram a materialização de um terceiro fragmento, uma parte que não deveria estar lá, mas que sempre vai distanciar uma pedra da outra. O corte feito pelo homem e a ausência que ele provoca, protagonizam. Fragmentar também pode vir a ser perigoso e autoritário. Todo cuidado é pouco.

Mas voltemos para o que há de positivo no fragmento. Um tanto abstrato, às vezes, o fragmento pode gerar desinteresse naqueles que buscam consumir aparências. Afinal, na era das telas de luz, são poucos os que se interessam em dar atenção à um pixel de cada vez. Queremos tudo televisão e preferencialmente, a melhor definição. Aviso aos navegantes, o caco de espelho legisla em defesa da imagem ruim. Imagem bastarda, pirata, no máximo adotada pelo flash de alguém.

Se o fragmento tivesse classe ele seria operário e estaria inserido em uma lógica de produção independente. Insistente em suas próprias imperfeições, consideraria a perfeição uma noção reacionária. Impróprio ao consumo e desinteressante aos que buscam qualquer tipo de fetiche, ele dá o que pensar.

Afinal de contas, preferimos ser azarados, partes de um ou mais espelhos quebrados ou bem definidos?


A Lua, quando fica velha, todo mundo sabe
que vira Lua Nova...

“O poema é a Lua na amplidão.”

“Os espelhos partidos têm muito mais Luas.”

“Mas que haverá com a Lua, que sempre que a gente a olha, é com um novo espanto?”


Mario Quintana


*Sobre El Taco: O livro de Guillermo Faivovich & Nicolas Goldberg: The Camp del Cielo Meteorites: Vol. 2: El Chaco, Edição Walther König, Köln (31 de março de 2013)
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Erro 
       
Janeiro, 2018

                         
Há uma vontade em nós, e essa só pode ser absoluta, de sempre estarmos certos sobre tudo e todas as coisas. Quem nunca sentiu aquele prazer em dizer para um certo alguém: "Ta vendo? Eu estava certo". Gozamos, enquanto sociedade, da habilidade de sustentar por longos e curtos períodos as coisas que se postulam ou são reconhecidas enquanto verdadeiras. Em nome do pai, do filho e do método científico continuamos batendo as nossas cabeças, umas contra as outras no melô da oquidão. A canção que sobresai oca é cantada por uma só pessoa, que brilha, de maneira desconcertante, a medíocre vontade de opinião.

Aos erros nós oferecemos uma péssima atenção, isso quando oferecemos alguma coisa. Com a obrigação de percorrer caminhos já trafegados por aqueles que vieram antes de nós, os que o marketing família e propriedade sugerem "vencedores", e pouco a pouco menos corajosos frente aos obstáculos que encontramos em nossas vidas, nos tornamos hábeis colecionadores de certezas de todos os tipos e tamanhos.

Errar segue tranquilamente para o seu histórico esconderijo, o inconsciente. E se mantido como verbo invisível, vai nos deixando paralisados na histórica estação da mediocridade. Sim, é possível que esse texto seja um elogio a análise e não há nenhum problema nisso. Como diz uma música sobre separação de uma grande amiga, "é tão bom fazer canção e ao mesmo tempo, terapia."

Encontrar-se com o próprio erro não é nada simples. Significa desapaixonar-se de toda a violenta e progressiva fábula que nos implicou em um mundo onde antes éramos a representação daquele metafísico que decidia o começo e o fim de todas as coisas e agora, modernos que somos, pura onividência. Aquilo que chamam antropoceno é uma marcha funebre que nos vê como heróis de nós e inimigos de nós mesmos. Não da para separar nós e mundo.

Resumindo, nós cógito acreditamos que somos quem decidimos, organizamos e ou aceitamos que um outro, dessa vez de carne e osso, via TED ou ao vivo, nos diga, de maneira fácil, tudo o que é certo e o que não é sobre tudo. 

Coragem. Errar é além do homem, é pensar a si mesmo como passagem, abrir espaço para o rio da percepção, escutar a novidade do pensamento e desaparecer a favor de uma outra coisa. Que outra coisa é essa?

A graça é não saber. E a graça maior talvez seja nunca saber.

Erroristas do mundo, uni-vos.

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Casa das sementes

Texto para o caderno Laboratório para Estruturas Flexíveis
tratando da visita a Escola Nacional Florestan Fernades - MST.


Julho 2017

Esse texto aborda duas experiências:

Uma pequena reflexão de um artista da dança que vive em 2017 na cidade de São Paulo e, ao perceber que está tomado por uma crise junto de seus parceiros de tra - balho e classe artística, se orienta por um longo espectro de sensações, escolhendo tratar especificamente uma com mais atenção: o pessimismo diante dos últimos acontecimentos micro e macropolíticos que persegue o desmantelamento de conquistas culturais e sociais no campo político institucional;

A ida de um grupo de pessoas habitantes da Casa do Povo à Escola Nacional Florestan Fernandes, lugar e território de resistência que visualiza e promove esperanças junto da vida em comunidade;

Não há nenhuma intenção em gerar uma comparação entre essas experiências. A intenção desse texto é, justamente, expor duas perspectivas capazes de instaurar reflexões, imagens e possíveis contra-narrativas.

Crise e Insurreição. Essas palavras são convocadas para dar corpo aos nossos amigos do comitê invisível.

E há vontade de corporificá-los.

Assim, sigo...

1. Crise

Todos nós conhecemos os desafios de viver em comunidade. Não é fácil perceber quais são as forças necessárias para alcançarmos os princípios éticos que nos alimentem e nos mantenham vivos no embate contra o pessimismo, a propriedade, a violência. O pessimismo (algo que venho observando com atenção) é um signo que aparece com maior força nos últimos tempos, sendo o resultado dos últimos acontecimentos macropolíticos do país. Entretanto, neste momento, também o percebo como resultado daquilo que mais precisamos desdobrar. O pessimismo é um movimento soberano, é um pensamento que antecede os resultados e de onde não é possível retirar nenhum tipo de surpresa. Sua forma de pensar se limita ao entendimento de um mundo cíclico ou, como diz o coreógrafo espanhol Diego Agulló, se caracteriza por uma série de profecias do negativo. Em tempos nos quais vivemos um derrame político, alimentar-se de um discurso que imuniza qualquer tipo de afecção transformadora, me parece um caminho gerador de pouca complexidade.

É necessário pontuar que a resposta ao pessimismo não é o otimismo, ou crer de forma ingênua que tudo está correndo bem. Se faz necessário traçar um espectro maior entre esses dois conceitos e encontrar um gesto outro que possa libertar o pessimismo da sua alta imunidade, jorrando os ressentimentos para fora e disparando as vontades para fortalecer o aparecimento de mais práticas conjuntas de contaminação. Afinal, é rara uma vida que não foi sequestrada pelas perversões tempo-espaciais, o que torna o desejo uma neurótica coreografia do consumo. Vida é coisa, ideia, lugar, bicho, pessoa, conceito, murmúrio, constelação, relação, matéria, matérias, diferentes densidades e topografias em estado de conversa infinita sob baixa imunidade.

2. Insurreição

Do ônibus que nos levava, vejo uma casa pequena no meio do campo, a qual responde pelo nome de Casa das Sementes – nomear é invocar. Essa é a paisagem que guardo com maior clareza da Escola Nacional Florestan Fernandes, localizada na cidade de Guararema, em São Paulo. A imagem de uma pequena casa cheia de vida e rodeada por uma floresta.

Assim conduzo meu relato sobre minha visita à Escola, partindo dessa casa de teto verde, dessa paisagem que torce perspectivas.

Reaprender a acordar, reaprender a cozinhar, reaprender a estudar, reaprender a conviver, reaprender a dormir, reaprender a sonhar. Como desenhar uma terra onde a vida está em primeiro plano, onde fazer viver é gesto? Assim Florestan aparece corporificada aqui:

Uma pessoa que nos recebe no campo, um percurso até o refeitório, uma exposição sobre o aniversário de uma revolução, o rosto de um guerrilheiro que convoca esperança estampado em uma das paredes, uma foto de uma anarquista lituana, um prato de comida, um café com açúcar ou um chá sem açúcar, um tempo para a digestão, uma conversa sobre o encantamento, um cigarro, um cigarro com uma pessoa do Rio Grande do Sul, um tempo para falar sobre São Paulo, uma caminhada para o auditório, uma apresentação coletiva, um vídeo sobre o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, uma emoção estranha, uma caminhada para conhecer onde dormem as pessoas que ali estudam e vivem, um lugar chamado Frida Kahlo, onde se produz conhecimento artístico, uma serigrafia que incita o direito à vida digna, um café sem açúcar, um pedaço de bolo formigueiro feito com farinha produzida em área ocupada, uma pausa para olhar o que existe em torno de nós, um tempo para conhecer aquelas pessoas que já pareciam ser conhecidas, um levante, um passeio até uma horta, um túmulo, uma homenagem a uma das pessoas que pensaram a agricultura sustentável e orgânica no Brasil, um espírito que protege a horta, uma quadra de futebol, um vizinho, uma piscina para os dias de calor intenso junto da vizinhança, um lugar para as crianças imaginarem, um projeto de campo de futebol, um campo de futebol que irá se chamar Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, um tapete de grama, outro tapete de grama, uma mão que carrega um tapete de grama que se desmancha, outro tapete de grama, outra mão que carrega parte de um tapete de grama, um campo de futebol chamado Sócrates sendo construído por muitas mãos com tapetes de grama, um trabalho em equipe, um cachorro que nos ajuda a perceber o quanto é divertido estar ali, um primeiro fim, um momento para descansar, uma partida de futebol, uma bola que se perde na escuridão após um gol que não foi feito, um cansaço momentâneo, um boteco socialista, uma cerveja, uma música do Rincon Sapiência, uma apresentação da ColetivA Ocupação, uma insurreição, uma emoção por estar presente, um princípio de tristeza, um término, uma volta, uma noite, uma casa pequena no meio do campo que responde pelo nome de Casa das Sementes, uma mensagem: internacionalizar a luta, internacionalizar a esperança, um muito obrigado à Escola Nacional Florestan Fernandes.                    

Laboratório para Estruturas Flexíveis

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Foto: Abbas Kiarostami

Imagem retirada so livro Abbas Kiarostami 
editado em 2004 pela extinta Cosacnaify
   

                             
Caminhar até perder o objetivo

texto encontrado na publicação "los adultos hablan y discuten
mientras que, a su lado, un
niño juega" 

realizada com Diego Agulló, Paz Rojo, Tarina Quello e Cristian Duarte

Julho 2017


Lembra quando a gente era apenas o encontro? Podemos abrir a vista e ver outros olhos que deixam a paisagem fresca e ao mesmo tempo furiosa. Distraídos dos nossos contornos, fugimos do amparo para iniciarmos uma construção conjunta de fendas. Há um tufão sensível que nos atropela e nos acaricia murmurando o outro, esse fora que reside em nós, que está entre nós, que movemos e que nos move. Quando atravessamos um percurso, de um ponto a outro, encontramos vários nós. Nesse caminho nada parece permanecer o mesmo. Em toda extensão há passado que ganha uma distância próxima, íntima e delicada, o futuro, dimensão de possibilidade e perigo, torna-se um turbilhão de dobras que, constituindo um movimento que é ativa espera, faz da identidade um sentido fraco de sentido. E o presente, respiro fundo que traz ao ser vivente vontade, altera a consciência e se expande posicionando uma multidão de pés à frente com uma clareza assustadora. Todavia, em um determinado momento da travessia algo se perde. A fragilidade da existência, assumindo sua condição de fascínio e violência, torna o tempo uma esfera insuportável. Na paisagem que desampara, somos lançados há constituir circuitos famintos por um número infinito de encruzilhadas. A pele assume o sentido de estrada, a terra assume o sentido de estrada, a pedra, a volta, a morte, a insistência, a permanência, a força, a vida. Percebemos então que, atravessar um percurso é um processo de invenção de caminhos. É como encontrar-se com o vazio corporificando a impossibilidade de apaziguamento da duração que povoa diferentes resoluções da alteridade. Desejar isso é conjecturar uma responsabilidade conjunta que se dimensiona a cada passo dado.

Sermos co-responsáveis por um passo, por um grau de potência vibrátil, é uma dança que exige atenção. Primeiro por que diz respeito a um processo de imaginação com o tempo e o espaço, ambos necessários para estabelecermos uma instância cooperativa entre as dimensões mais invisíveis da ação caminhar. Segundo, no processo de caminhada é fundamental estabelecer-mos um campo de intimidade com os sentidos. Isso, técnica de desconstrução de substâncias e sujeitos do conhecimento, é um abraço que não sabemos como se configura mas que desejamos conhecer e praticar a todo momento. Para que isso aconteça é necessário engajamento, envolvimento e insistência. Quando um pé afunda o chão, o chão responde com memória. Força que incide em nós e nos empurra para a sensação.

Lembro que quando era criança caminhava sentindo o horizonte mover-se junto de mim. Lembro neste momento do deslocamento das minha linhas de fuga mais distantes. Lembro da geração de vento, essa tensão aérea que deseja atravessar e ser atravessada, do pequeno tropeço que fez Fanon encontrar-se com sua força negra.

Um filme de Béla Tarr, uma criança com um gato nas mãos que da passos tortuosos e melancólicos em uma paisagem recheada por diferentes tonalidades de preto e branco. Lembro de Haroldo Saboia, amigo e artista que me ensinou que desaparecer é possível e essa sensação nostálgica que é lembrar das coisas. Lembro da paisagem que me fez um dia sonhar que o outro lado do mundo era mais próximo do que me foi dito na escola. Um dia alguém me disse que houveram povos que caminharam pelo mundo todo antes de nós. Eles eram mais frágeis que nós. Eles sabiam como os nômades da muralha da China de Kafka os desvios e as frestas para travessar as barreiras que separavam os mundos. Escorrega por todo esse gesto que é caminhar uma gana de mover-se, um desejo que necessitava deslocar a percepção para ser realmente estabelecido. Aqui não há objetivo, não há percurso definitivo, o que habita esse passeio é a experiência que, abalada pela ação, diz em voz alta repetidamente:

Sempre há algo entre um ponto e outro ponto. Sempre há algo entre um ponto e outro ponto. Sempre há algo entre um ponto e outro ponto. E o que há, só saberemos durante.