Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo

Foto: Haroldo Saboia
Galeria Millan, São Paulo - 2017   

                             
sinopse

Na relação, o tempo parece estar em constante formação. Quando ele para, o mundo continua...
Algo sempre deixa de aparecer entre nós. Fico pensando se não foi por conta desse vazio que decidimos inventar a palavra. Como tentativa de ocuparmos essa abstrata medida e dar algum sentido para o que não aparece, fizemos uma letra, depois um nome e assim, com nossas próprias mãos organizamos uma gramática.

Palavra para ser dita
Paisagem para ser ouvida
Prática para ser vista
Imagem para ser praticada
sobre a criação

Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo é o primeiro trabalho dirigido pelo dramaturgista e coreógrafo Bruno Levorin. Depois de anos trabalhando ao lado do coreógrafo Cristian Duarte e de outros artistas da cidade de São Paulo, em 2016, partindo do encontro com o artista visual Haroldo Saboia, surge o desejo em investigar praticas coreográficas que discutam a relação entre gesto, nomeação e invocação. Aquilo é o início desse desejo que continua em processo de escavação entre as palavras e as coisas.

ficha técnica

Coreografia e Direção: Bruno Levorin Cocriação e Coprodução: Bruno Levorin, Carolina Goulart, Clarissa Sacchelli, Felipe Stocco, Guilherme Valério, Haroldo Saboia, Rogério Martins e Thany Sanches Dança: Clarissa Sacchelli e Felipe Stocco Dramaturgia: Haroldo Saboia Figurino: Thany Sanche Vibração:Cristian Duarte, Paz Rojo e Diego Agulló Produção Executiva: Carolina Goulart Fotografia: Haroldo Saboia Luz: Laura Salerno Realização: Residência artística Lote#5 - projeto contemplado pela 21a Edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo Apoio: Casa do Povo e Festival Arqueologías del Futuro Agradecimentos: Eduardo Levorin, Angela Levorin, Mayra Azzi, Bruno Freire, Thiago Granato, Gustavo Ciríaco, Leo Nabuco, Julia Feldens, Regina Parra, Alina Ruiz Folini, Catalina Lescano, Clarice Lima, Aline Bonamin Classificação:12 anos.

Apresentações: Casa do Povo- Sp, Arqueologias del Futuro - Buenos Aires, Galeria Millan, Sesc Santo Amaro - Modos de Existir, Centro Cultural São Paulo - Dança menor, Sesc Ipiranga. 

Foto: Foto de Haroldo Saboia da apresentação na Galeria Millan em São Paulo, dentro da exposição organizada por Regina Parra com obras de diversos artistas, dentre eles Ana Mazzei, Tunga, Nelson Felix, Thany Sanches e outros. Na imagem, em protagonismo, escultura de Ana Mazzei.

caixa de referência 




Vídeo: Luan Banzai e Noemi Creux
Centro Cultural São Paulo - 2019


Lista de enigmas para uso e reflexão, elaborada a partir do trabalho
Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo
por Bruno Levorin e Haroldo Saboia,


São Paulo, Janeiro - 2018

Um tempo no infinitivo

A duração, a dilatação do tempo, sua suspensão. Qual qualidade de tempo é possível criar no encontro com uma ação qualquer?

Um corpo diz, um corpo faz. Um corpo invoca e gesticula memórias familiares. O que há de estranho nessas memórias?


  Foto: Haroldo Saboia


Ver é permanecer?

A beleza de toda leitura está contida no desaparecimento das palavras.

Quando alguém voluntariamente, com o livro sobre as mãos, a partir do que leu, busca respostas no mundo –  interrompendo a sequência temporal das frases e projetando seu olhar para longe do livro – transforma a palavra escrita, a palavra lida, a palavra vista, em fumaça.

Embace o olhar. Torne-o do texto e do mundo ao mesmo tempo.

Vagueie com a sua presença psíquica sobre todos os espectros de uma experiência.

Gere uma fuga que não tem um fora

Tudo se sabe, nada se sabe.

Uma operação dialógica que acontece na linguagem: saber e não-saber, dizer e não dizer, fazer e não fazer. Aquilo que escapa pelas mãos.

As mãos são plano, composição, corte, imagem, corpo, unidade, bifurcação, diferença.

O que as mãos fazem em nós?

As coisas podem ser pelo que podem não ser, tomando dimensões às vezes maiores do que realmente são. As mãos me aproximam da realidade. Elas são o sumo da ficção e a gênese da materialidade.

Como duvidar com as próprias mãos?
Distância
           
 ponto a ——————————————————————————— ponto b

                           
     [o espaço entre as coisas se expande ao infinito]


Há sempre uma infinidade a ser percebida sobre uma criação: verso e reverso, fita de moebius. O horizonte a que se caminha, dentre muitas coisas, por exemplo, pode ser imagem e produção de sentido experiencial. Isso nem sempre diz muito sobre o desejo das coisas, da criação. Todavia renova, a partir das suas ineficiências, a crença de que há algo ainda misterioso, não apreendido pelos criadores.

A escolha da ausência reafirma a presença das coisas. O horizonte, uma falácia necessária.

Sim e não, luz e sombra, único e singular, um e dois, um mais dois.

O dito não se aloja no visto, jamais.

Esperar não é o mesmo que espectar.

Perder-se é um desejo.

As coisas exigem engajamento para que com elas possamos nos perder. A educação pela pedra, a didática do contato.

A vista ensina o que as coisas intuem e falham sobre aquilo que é possível, mas não agora.



Foto: Haroldo Saboia

O que sobra? 

A linguagem enquanto experiência que se realiza no corpo.



Registros realizados do processo de investigação, orientados por procedimentos coreográficos
por Bruno Levorin, Clarissa Sacchelli, Felipe Stocco e Haroldo Saboia




A idéia de registro é utilizada como produto e produção. Isso significa que, na ação de registrar, está contido:

– a implicação para a finalização de cada imagem, o que comtempla direção e dramaturgia de cada procedimento.

– o pensamento de quem registra, o pensamento de quem vê e o pensamento do dispositivo câmera.

Tanto o gesto quanto o registro possuem a mesma raiz etimológica, o verbo latino gerere. A diferença está no prefixo re, contido na raiz de registro (regerere), que designa trazer de volta, empilhar, coletar. A raiz regerere inaugura então o verbo regestus (particípio passado da raiz) que origina enfim registro.

Registro portanto é a ação de reproduzir, atualizar e arquivar o gesto.



Vídeo e Edição: Haroldo Saboia
Dança: Felipe Stocco e Clarissa Sacchelli

Casa do povo - 2017

Definição: procedimento organizado para o desenvolvimento e precisão das falanges, com o objetivo de ativar a relação boca-mãos, fundamental à comunicação e restabelecer a percepção do estatuto de uma coreografia menor - no sentido da amplitude do movimento, da razão estética e social cotidiana e filosoficamente falando a partir do conceito cunhado por Deleuze e Guattarria respeito da literatura de Kafka.

Indicadores: o tempo – 30 minutos corridos / relação – ação nunca praticada sozinha.

Intenções: percorrer o universo da imaginação comunicacional; descrição de paisagens em escala de maquete; brincadeira que não tem e nunca terá função a não ser a percepção feliz e existencial em relacionar-se junto de algo ou alguém.



 
Vídeo e Edição: Haroldo Saboia
Dança: Clarissa Sacchelli

Casa do povo - 2017

Definição: O procedimento  consiste na abertura e esgotamento da atenção com o intuito de gerar desde aquele que pratica até aquele que assiste, uma sensação conjunta de cansaço e relaxamento profundo.

Enunciado: Descrever milimetricamente o espaço com os olhos, perseguindo com calma, como uma câmera em modo plano sequência, uma trajetória contínua, surfando pelas linhas, superfícies e profundidades do espaço.

Efeito colateral: Cansaço do olhar e consequente relaxamento da pele do rosto para o centro do peito. Sono. Disponibilidade para o movimento espasmódico decorrente da resistência muscular superficial frente ao inevitável colapso de energia vertical.




 Vídeo e Edição: Haroldo Saboia
Dança: Felipe Stocco

Casa do povo - 2017




 Vídeo e Edição: Haroldo Saboia
Dança: Felipe Stocco
Casa do povo - 2017

Definição: O procedimento consiste na atenção total dos movimentos produzidos pelo performer. Nesse mapa de consciência, o desafio é relacionar-se com todos os vetores ao mesmo tempo, sejam esses de oposições, justaposições ou concomitantes.

Pontos de produção: Movimento (interno-externo)/ Percepção (micro-macro)/ Olhar (o que vemos e o que nos olha)/ Tempo (em constante formação)/ Distância entre as coisas (espaços vazios e economia dos afetos).

Vetores: boca, olhos, articulações – pescoço, ombros, cotovelos, pulsos e falanges. Relação de oposição e união com integridade.Estranhamento: encontrar no toque do próprio corpo a sensação de tocar um outro corpo e encontrar no corpo a sensação do seu próprio toque como sendo o toque de outra pessoa.

Espaço: levantamento inicial na prática 01 (chão-verticalidade), tridimensionalidade ativa junto do trabalho com os vetores, transformação da densidade do ar via tônus muscular.

Velocidade: ganho de velocidade a partir e sempre da compreensão da aerodinâmica da Estrutura* criada (Peso, extensão, intencionalidade e escuta do acontecimento). Coluna como eixo e linha fundamental.

*Estrutura é uma proposição coreográfica, criada por um ou vários corpos, com o intuito de sustentar e mover um sistema de relações e atravessamentos. É fundamental para a Estrutura considerar aerodinâmica, durabilidade e alto índice de adaptabilidade frente às crises interiores e exteriores ocorridas durante a prática do procedimento.


Vídeo e Edição: Haroldo Saboia
Dança: Clarisse Sacchelli e Felipe Stocco 

Casa do povo - 2017

Eixos: coluna, o outro e a câmera. Tudo isso está implicado na produção de cada estrutura.

Vetores: boca, olhos, articulações – pescoço, ombros, cotovelos, pulsos, falanges, coluna, joelho e tornozelo. Relação de  oposição e empatia junto da integridade.

Estranhamentos: encontrar no toque do próprio corpo a sensação de tocar um outro corpo e encontrar no corpo a sensação do próprio toque ser de outra pessoa. Os olhares dos performers nunca se cruzam. O toque como agente para invocar a memória das superfícies (roupa, tecido, espaço).

Espaço: produção de uma economia das distâncias entre os eixos, dilatação radical do tempo, precisão no abandono e volta da ação (arbitrariedade).



Lista de anotações, reflexões e fragmentos dos conceitos que guiaram o processo de pesquisa


Na tentativa de nomear questões que atravessaram a investigação, um vocabulário foi criado tomando como ponto de partida a experiência do processo. Levando em conta os singulares modos de atuação e com o intuito de encontrar possibilidades para a manutenção do pensamento gerado durante os ensaios, exercitou-se essa metodologia da escrita, produzindo outra proximidade com aquilo que estávamos fazendo.

Segue um exercício de síntese de todo o conteúdo produzido durante 2 anos de investigação.


  • Produção de Movimento 
    (Artificialidade/Arbitrariedade)                           

Movimento é algo que produzimos e o início dessa produção depende da nossa conexão com uma constelação de vontades, atravessadas por memória, imaginação, estímulos externos, conceitos, afecções, relações e etc.O movimento pode partir de uma escolha, uma tomada de posição frente a uma indicação ou acontecimento (agir sobre ele, podendo ser essa ação a escuta radical daquilo que acontece) ou mesmo pode, a partir da criação de uma situação coreográfica, gerar estímulos para o seu aparecimento.

No processo de pesquisa, o que tornou-se um desafio para nós foi justamente nos perguntarmos sobre a manutenção dessa produção. Partindo da idéia de que nosso interesse estava circunscrito na noção de movimento conectado a idéia de gesto, o que percebemosfoi que o primeiro gesto de produção se confundia com o último. Explicando melhor, havia algo da lógica de operação da nossa produção que nos mostrava que todo gesto instaurava na sua ação uma força inaugural, um princípio de morte/transformação, e uma noção de reprodutibilidade. A sustentabilidade então estava em juntos construirmos uma máquina, um organismo movido por condições que tornassem possível a compreensão e desenvolvimento dessa lógica.

Inventamos então uma máquina de desejo que tinha como principal condição dizer sim a tudo que se manifestava a partir do fazer (essa máquina é uma outra forma de nomearmos esse vocabulário que segue). Tentando escapar de uma certa reatividade (macro e micropolítica) que pudesse paralisar a nossa vontade de ação naquele momento e situação, tomamos como ponto de partida para o trabalho a afirmação positiva e radical das vontades. 

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Movimento x Intenção. Falsa oposição ou possibilidade de distinção? Há movimento não intencional?

– Não somos vítimas daquilo que produzimos. Somos responsáveis por tudo que decidimos publicar no mundo. A culpa é moral, a responsabilidade é política. Tentativa de construir uma noção de emancipação a partir e através do movimento. Responsabilidade com as escolhas e com aquilo que produzo: responsabilidade com aquilo que você gera e o que lhe gera.

– Arbitrariedade 01: exercício de liberdade/constituição da autonomia.

– Arbitrariedade 02: estratégia simbólica e compositiva/autonomia do Sujeito.

  • Micromovimento (“Pausa” / Dinâmica / Diferença de tensão) Amplitude MENOR Importância MENOR Sentido MENOR

O interesse pelo Micromovimento partiu da vontade de, na produção gestual, se reencontrar com o ordinário, com o comum, com aquilo que aparece nas nossas experiências mais cotidianas. Também como acúmulo sensível do sabor da experiência, o micro veio para gerar uma dimensão de espelhamento da consciência sobre aquilo que é óptico e háptico no gesto. É como se pudéssemos, engajados em um estado de atenção, constituirmos junto de uma ação qualquer, um fluxograma perceptivo que compreende  encontrar os pontos de encontro focal de distintas sensações, nesse caso a visual e a tátil, e sustentar um estudo constante da  proximidade e distanciamento delas no sentido da gestualidade.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Amplificação e contenção do sensível. O corpo como um sintetizador das sensações.

– Tempo para o tempo aparecer. Como materializar sensorialmente o tempo dentro e fora das nossas consciências

– Ganho de espessura. Fazer com que a sensação ganhe tamanho e forma.

– Reverberação da experiência. Tornar a sua experiência acessivel para outras pessoas.


Foto: Haroldo Saboia

  • Tipo de Tensão Vibracional (entre relaxamento)         
     FUNDO/SUPERFÍCIE

Exercício que parte da idéia de variação do tônus muscular, praticando uma qualidade de movimento que perpassa vários territórios e colorações desse estado de tensão elástica, com o intuito de encontrar uma zona de indistinção tônica.

Via sensação, o objetivo está em, na produção de movimento, perseguir os pontos de encontro dessas tensões, um dos muitos lugares onde imaginamos estar localizado as crises, negociações e transferências para geração de continuidade dramatúrgica do corpo. Foi justamente nessas regiões que apostamos a nossa concentração durante a pesquisa para encontrarmos as possibilidades de transformação daquilo que é esperado de uma ação. Ou seja, o objetivo foi se implicar nessas zonas de conflito, zonas de indeterminação tônica, para fazer com que um suposto vetor resultante desse debate, vibra-se distante de uma resposta automática.

Tudo isso condicionado a pergunta: Onde escolhemos atuar, com a nossa atenção, sobre aquilo que estamos produzindo esteticamente e eticamente?

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Musculatura profunda: estudo de tônus e textura muscular.

– Pele: superfície. Roupa, tecido enquanto superfície, corpo vivo, espaço de atuação.

  • Memória Corporal/Molde

Memória corporal surgiu como questão no trabalho para ser desafiada. Uma série de exercícios foram experimentados para tornar essa sensação uma das muitas possibilidade de aprofundamento dos entraves e crises que a produção de movimento alcançava. 

O que a prática foi nos apresentando é que esse conjunto de hábitos corporais muitas vezes nos protege dos problemas do sistema pois responde de maneira eficiente as crises. Tomando como ponto de partida o desejo pela ineficiência e desejando demorar mais sobre as trajetórias difíceis, instauramos dois posicionamentos frente a esses acontecimentos:

1.Junto do problema, perceber a resposta que era produzida com maior velocidade e, a partir do movimento, gerar uma questão para essa resposta instaurando uma dialética corporal.

2.Entendendo movimento como trajetória e sabendo da possibilidade de volta ao que se reconhece como ponto de partida dele, perceber que essa volta não necessita passar pelos mesmos lugares e nem reproduzir os mesmos caminhos da sua trajetória de partida.    

Também acumulamos mais uma proposição, implicando, sobre essas trajetórias que se formavam, uma noção de molde. Molde é intenção que gera uma atenção específica sobre o movimento, para transformar uma trajetória em um princípio primeiro de reprodução. 

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Estrutura: Sabotar a memória da Estrutura/Sem ser criativo. A volta nunca é redonda.

– Molde: idéia de produzir algo com a certeza de que isso será utilizado para reprodução.

  • Prática

Grupo de ações e verbos que atravessados pela idéia de repetição e diferença, proporcionam organizar parâmetros para que um movimento se estabeleça e encontre suas próprias éticas, crises, apontamentos, sensações e sentidos.

Neste trabalho, a idéia de Prática foi entendida enquanto conceito, caixa de ferramentas que está diretamente voltada à produção de forças físicas e psíquicas, submersas em estados de concentração, atenção, temporalidades expandidas, latência das percepções espaciais e consequentemente de suas superfícies. Modulando a velocidade do pensamento a partir da produção de direções que desestabilizam os automatismos do sistema sensório-motor, a noção de prática foi implicada para nos ajudar na constante manutenção da sensação, sobre a continuidade das potências estabelecidas no momento presente.

Cada começo é só continuação, e o livro dos eventos está sempre aberto no meio”. Wislawa Zymborska.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Ponto de partida: Na limitação, encontrar os impulsos. Do não saber, encontrar o saber. Da concretude, tocar o enigma.

– Constelação: idéia de simultaneidade. De longe cria-se desenho, de perto escultura.

– Tempo Presente: afirmado a todo momento e em constante formação.

– Desejo de FORMA que não se transforma em FIGURA: ordem da vontade.

– Gerúndio: tempo que não é fixo – tempo infinitivo.

  • Ser Global/ Ser específico (paradoxo/fragmento)

Termo usado para expandir a noção do próprio corpo, seu contorno, inventando e  transportando a sensação por outras possibilidades proprioceptivas.

Nesse processo, tratando-se da invenção, pode-se tanto caminhar pela lógica da fragmentação, por exemplo pensar que o corpo está condicionado à vontade e desejo das mãos, unicamente, como também pelo princípio da extensão, gerando uma noção corpórea que extravasa a idéia comum de contorno humano, podendo compreender uma corporeidade formada por corpo humano, chão e parede por exemplo.

No caso do transporte, a vontade é gerar uma sensação de materialidade da virtualidade que é o outro. Transportar a consciência para um outro corpo, para uma outra sensação de corpo. Por exemplo, produzir uma movimentação imaginando que você está se vendo produzi-la, como se fosse algo ou alguém fora de você que o fizesse.

Ambos os caminhos foram utilizados no trabalho.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Tensão Vetorial.

– Hiper Atenção: atenção total, às vezes fragmentada, outras generalizada do que se produz* junto com outro corpo.

*Pontos de produção: movimento (interno – externo)/Percepção (micro – macro)/Olhar (o que vemos e o que nos olha)/Tempo (em constante formação)/Distância entre as coisas (espaços vazios e economia dos afetos).

  • Abandono (Cortar o fluxo/Largar)                                          PENSAMENTO – RESPONSABILIDADE – TOMADA DE DECISÃO

Desde o início da pesquisa falávamos sobre um certo fluxo que se mantinha na produção de imagens nas artes performáticas nos últimos anos. Pensávamos sobre essa idéia de fluxo conectada a noção de consumo e de desempoderamento das próprias imagens. A imagem tem se tornado uma antecipação da potência dos encontros, tem deixado de existir como rasgo, como ferida, como possibilidade, para tornar-se uma estratégia de captura dos desejos mais ansiosos, sejam esses “revolucionários” ou não.

Possivelmente, por conta da precariedade do campo de produção artístico, da pressão do mercado por produtos estabelecidos, e dos dispositivos de compartilhamento, o que se vê são imagens que perderam sua noção de permanência, tornando os nossos sentidos cada vez menos habilitados a experimentar outras noções de temporalidade junto delas.

No trabalho experimentamos gerar pequenos bloqueios de circulação, contra-fluxos, estratégias para abandono dos movimentos que se apresentavam, em um dado momento, com uma queda de atenção sobre os sistemas coreográficos criados. A queda de atenção tornava o sistema propício ao equilíbrio, a estabilidade e a uma autoprodução apaixonada por si mesma.  Isso fazia com que o acontecimento perdesse força e complexidade.

Como investigação, decidimos subtrair elementos que acreditávamos ser fundamentais para a expectativa gerada entorno das imagens. Essa subtração tinha como objetivo dissimular a captura, retirando as imagens de perto das vontades de encerrá-las em si, deixando os sentidos daqueles que se relacionavam com elas desconcertados.

Por fim o abandono tornou-se também uma estratégia dramaturgica do trabalho, nos aproximando da idéia de corte e montagem no cinema. Junto dos filmes de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Pedro Costa e Apichatpong Weerasethakul, aprofundamos a noção de arbitrariedade contida no corte cinematográfico, entendendo esse conceito como ferramenta de composição para fazer ver o movimento de dissidência dos fluxos.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Dualidade do verbo Abandonar: inatividade/silêncio.

– Perda de Força: impotência, paixão triste. Vladimir Safatle ( “…pois não há paixão que, em vários momentos, não nos entristeça. Não há afetos que não nos contrariam, não há vida que não se deixe paralisar, que não precise se paralisar por certo tempo, que não se vista com sua própria impotência a fim de recompor sua velocidade. Mais, ainda. Não há vida que não se sirva da doença para se desconstituir e reconstruir.”).

– Abertura de Espaço: Real e Virtual.

  • Construir Junto 
    (Relação/Conversa)

Esse sempre foi um dos limites da pesquisa. Entender a construção conjunta de saber e produção, seja de movimento sensório-motor, seja de subjetividade. Como nosso interesse estava voltado para a linguagem, pensávamos sobre a possibilidade de constituirmos uma conversa gestual onde a prática pudesse nos mostrar outras formas de organização que não fossem necessariamente dialéticas.

Um gesto contamina o outro, atravessa, sobrepõe e escapa. Um gesto junto de outros escuta e diminui a sua latência e sentido no espaço. O corpo convoca suas fragilidade e memórias para junto de outros corpos constituir um vocabulário de sensações.

A construção conjunta de algo é um horizonte utópico. A possibilidade que há nesse

Como juntos podemos construir uma incompletude?

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Tanto na cena como fora dela.

– Como manter uma conversa para além da dialética?

– Espaço/Silêncio/Dinâmica/Justaposição/Dialética/Negativo/Positivo.

– Atração Magnética: Polos positivos e negativos.

– Distâncias e dimensões.


Foto: Haroldo Saboia



Pôsteres

São Paulo, 25 de agosto - 2019

Na estreia do trabalho, dois pôsteres foram produzidos com o intuito de divulgar mas também compreender visualmente a peça. Toda imagem carrega sob sua produção uma noção de síntese. Entendendo que o texto também é imagem, no caso do pôster o título do trabalho - a escolha de onde cada palavra descansa se faz tão importante quanto o lugar que repousa o foco em cada foto - ele, fragmentado, também deu visibilidade para uma espécie de mapa, condução espacial da encenação.


     
Foto: Haroldo Saboia
Desenho Gráfico: Bruno Levorin e Haroldo Saboia. 





Foto: Bruno Levorin
Casa do Povo - 2017


Correspondências


Durante os primeiros meses de criação, dentro da residência artística Lote#5 na cidade de São Paulo e enquanto estava em uma residência artística no Chile, escrevi cartas para os artistas Cristian Duarte, Clarice Lima e Haroldo Saboia. A idéia dessas correspondências era tentar organizar minhas intenções e vontades sobre o trabalho que começava a ser criado na época. Foram 3 anos de investigação e por isso muita coisa mudou. Todavia fica aqui uma espécie de conjunto de fósseis dando pistas de como as coisas se iniciaram. 

Importante dizer que as correspondências sofreram pequenas edições em Março de 2020 para aqui serem publicadas. Nada dessas edições realizadas alteraram os sentidos originais das cartas.



Bruno Levorin
Rua Aurélia 1723, apto 30, 05458-002


São Paulo, Março - 2017 

DECIR, HACER


Entre lo que veo y digo,
Entre lo que digo y callo,
Entre lo que callo y sueño,
Entre lo que sueño y olvido
La poesía.
Se desliza entre el sí y el no:
dice
lo que callo,
calla
lo que digo,
sueña
lo que olvido.
No es un decir:
es un hacer.
Es un hacer
que es un decir.
La poesía
se dice y se oye:
es real.
Y apenas digo
es real,
se disipa.
¿Así es más real?
Idea palpable,
palabra
impalpable:
la poesía
va y viene
entre lo que es
y lo que no es.
Teje reflejos
y los desteje.
La poesía
siembra ojos en las páginas,
siembra palabras en los ojos.
Los ojos hablan,
las palabras miran,
las miradas piensan.
Oír
los pensamientos,
ver
lo que decimos,
tocar
el cuerpo
de la idea.
Los ojos
se cierran.
Las palabras se abren.


Octavio Paz



*


Queridos Cris e Clarice

Como vocês podem perceber, decidi escrever uma única carta para vocês, preferindo assim fazer desta correspondência um lugar de compartilhamento coletivo da intimidade do trabalho que iniciei nestes primeiros meses de 2017. O que vou relatar aqui passa não somente sobre questões técnicas e exposição de referências e perguntas para e sobre o trabalho que pesquiso agora. É também espaço para algumas angustias e dificuldades aparecerem, o que acredito à todo movimento de criação pertença.

Desde já, deixo claro que não tenho a preocupação e nem mesmo quero que vocês se sintam cobrados a responder esta correspondência e outras que estão por vir, pois antes de mais nada, esse é um processo importante para mim. Quando escrevo e quando tenho interlocutores para isso, meu mundo se organiza e tudo fica mais fácil e difícil de um jeito bom. Por isso e por outras coisas, desde já agradeço a atenção e a existência de vocês nesse trabalho. Assim os pensamentos conseguem navegar entre duas margens admiráveis.

                                                      

**


Iniciei esse mês de março depois de alguns dias sendo tomado por uma ansiedade sem precedentes. Tive algumas crises e transbordei de tanto estudar antes dos ensaios começarem. Tenho uma antiga mania, nada saudável diga-se de passagem, de inventar doenças para mim. Desde a morte do meu pai isso se intensificou e me assusto com tudo de diferente que aparece ou sinto. Ao mesmo tempo fico pensando se não é exatamente a diferença que nos faz sentir. Será que isso é na realidade medo de ser atravessado por aquilo que não sei dizer o que é? Minha atual dificuldade por me apaixonar nos últimos tempos possivelmente também se localiza ai, mas isso é outro assunto...

Meditando consegui organizar os pensamentos e vontades sobre o trabalho, e elaborei algumas listas. Com isso, apareceu com clareza que o trabalho quer falar não sobre antagonismos mas sobre ambiguidades. Sobre as fronteiras que existem entre as coisas e a possibilidade de, com o encontro junto da inconstância, encontrarmos complexidade e rigor. Por inconstância chamo aquilo que se apresenta como uma oscilação, que coloca em cheque qualquer forma de identidade ou separação entre as coisas. Trato ela mais como movimento que, em constante manutenção, torna difícil o reconhecimento total sobre algo ou alguém e menos enquanto adjetivo, qualidade.

Uma das primeiras listas e acredito mais fundamentais que organizei é de “supostas oposições”:


1.dizer / fazer

2.matéria / forma

3.ausência / presença

4.sujeito / objeto

5.apresentação / representação

6.imaginação/ projeção

7.corpo / mente


¬ em negrito estão os polos mais fundamentais para a pesquisa.

De cada caule nascem outras listas e um milhão de perguntas. Mas falemos um pouco sobre o terceiro caule.



*** 


ausência / presença.

Digo, o tempo todo, que este trabalho não pode ser entendido como um duo, mas deve ser percebido como um trio. Clarissa e Felipe estão juntos de uma terceira coisa, uma coisa que existe e que está em permanente construção ou em permanente apresentação. O que dá vida a isso é o espaço que existe entre os três, a distância entre eles, chave fundamental para entendermos a economia deste espaço e a velocidade, tornando a assimilação da ausência pelo outro que vê, que assiste, como criatura que também sente vontade.

Todavia, ainda não sei dizer o que é isso. Isso me deixa angustiado. Mas já que estamos aqui, vou tentar desenvolver algo...

Em um primeiro momento pensava que o problema estava em saber o que Clarissa e Felipe construiam, esculpiam, produziam, achando que ao encontrar esse sujeito oculto da oração, esta materialização da ausência, resolveria o problema. Só que não. Entendi que, o que não sei não é sobre a ausência mas sobre o que junto dela estamos formando. O que é isso que, junto da ausência, está em formação? Ou seja, isso não é sobre formar ou dar a ver ausências mas sobre estar em formação junto das ausências.

Há algo de metafísico nisto tudo ou místico como preferirem. Todavia o principio dessa mística ou metafísica não é a crença, a vontade por verdade, mas a imaginação, a ação da imagem. A imaginação é, para mim, a maior ferramenta de produção de realidade que temos a nossa disposição e como hipótese, o maior dispositivo para instaurar um outro parâmetro para além da verdade.

Em conversa com o grupo retomamos momentos onde a palavra ausência aparecia na vida de cada um. Na minha vida apareceram em três.

A adoção;

Sou adotado e a primeira lembrança que tenho da minha mãe biológica é justo a lembrança da ausência. Durante muito tempo senti raiva dessa ausência, não por que me sentia mal com a minha família adotiva, por sinal maravilhosa família que me acolheu, mas por que essa palavra ausência me conectava com outra palavra, abandono. Recentemente, em uma regressão familiar, isto que chamam constelação familiar, tive a possibilidade de voltar até o meu primeiro momento de vida e descobrir que minha mãe não me abandonou, ela só não pode ficar comigo. Consegui senti-la perto de mim chorando muito e me pedindo insistentemente desculpas quando nos tocávamos pela primeira vez sendo criaturas diferentes mas ainda conectadas por um cordão.

Desde então, ausência e abandono são coisas diferentes para mim. Hoje sinto que minha mãe biológica foi ausente, mas não me sinto mais abandonado.

A parede áspera;

Quando criança, 5 anos acredito, minha primeira lembrança de quando minha mãe adotiva me deixava na escola era de sentir a parede áspera da minha sala de aula nas minhas costas. Era um papel de parede que se parecia com uma lixa vermelha que a professora, por sadismo talvez, fazia com que todas as crianças da sala sentassem no chão e encostassem nesse suporte torturante.

Nunca fui uma criança de chorar por conta da minha mãe adotiva me deixar sozinho, mas essa parede perturbava o meu inconsciente. Não conseguia dormir e essa sensação áspera sempre me conectava estranhamente a ausência. Era uma sensação estranha familiar que só o tempo futuro me faria entender.

Meu nascimento foi prematuro e o parto, dizem, não foi fácil. A primeira sensação longa que tenho de estar em contato com algo exterior a mim era a superfície de uma incubadora no qual permaneci, dizem, uma semana.

A superfície das incubadoras são levemente estriadas. Isso acontece para impedir que os bebês que lá estão não deslizem ou ao sentirem vontade de se mexerem tenham uma melhor estabilidade para isso. Os médicos dizem que essas micro estrias são quase imperceptíveis, eu diria quase...

Para mim a palavra ausência sempre teve uma certa aspereza, era uma superfície que me devolvia sensação e me dava ao mesmo tempo estabilidade. Uma sensação estranha familiar.

A morte do meu pai;

Quando meu pai morreu eu vi um buraco. Ele era fundo, meu pai estava em um carro pequeno dentro de um caixão, entorno do buraco muitas pessoas reunidas, alguns homens trabalhavam dentro deste buraco enquanto outros, com algumas cordas davam nós entorno da grande caixa que cobria meu pai para coloca-la dentro dessa cratera. Foi nesse momento que vi um monte.

Daquele buraco havia saído um monte de terra e que eu sabia que parte dela não iria voltar para lá, parte dela iria permanecer para fora. Para mim a palavra ausência então tornou-se esse pequeno monte de terra que iria permanecer para fora.

Ausência: Distinta de abandono, estranha familiar e que permanece fora.


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Crise fundamental: Sobre o que o trabalho trata?


Neste primeiro mês de projeto, tomei como decisão entrar no limbo da pesquisa. Nos momentos anteriores que toquei no Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo, estava completamente implicado em momentos de apresentação pública do processo e por isso ansioso por testar distintas formulações cênicas de abertura.

Desta vez não, e por isso desejei e conquistei a sensação de perdição total.

Sobre o que estou falando nesse processo?

Se pudésse explicar para alguém sobre o que é a pesquisa, o que diría?

Tudo começou com Dizer Fazer, esse poema que Octávio Paz escreveu. Ele parecia até então o ponto de partida fundamental de tudo que estávamos construindo. Agora vejo que não. Ele não é ponto de partida e nem ponto de chegada. Ele é uma estação. Sinto que cada dia mais, através de outras estações que estou desembarcando chego mais perto dessa primordial estação, mas confesso, ainda não cheguei e não sei se vou chegar.

Em conversa com o grupo, foi de comum consenso que esta pesquisa toca em questões ontológicas, questões existenciais. É como se com a dança estivésse dispostos a repensar e quem sabe, estabelecer novas formas de perceber dimensões caras a filosofia e a vida. A idéia aqui não é tornar a dança um princípio de ilustração mas uma dimensão de produção de pensamento em constante formulação.

Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo, por enquanto, é uma conversa estabelecida entre sistemas operacionais de sentido autônomos ( performers, público e ausências) que juntos dedicam tempo e espaço para falarem sobre matéria / forma , ausência / presença , apresentação / representação.

Fica claro?

A filosofia por vezes deixa as minhas associações mais complicadas do que elas realmente são. Vocês não acham? Por isso que a gastronomia, a cozinha, tem um papel tão importante para mim. Por que nela me sinto químico, sinto que as coisas podem explodir dependendo da temperatura e das quantidades administradas, e no final, no final mesmo o que vai decidir é o sabor, isso que é por vezes impossível de descrever. Dança e cozinha talvez estejam mais próximas. E a filosofia, ainda não sei.

Como vocês devem imaginar tenho muitas, mais muitas outras crises para compartilhar. Todavia acredito que isso seja assunto para uma próxima correspondência.

Finalizo essa carta com três tempos que Georges Didi-Huberman compartilha conosco no seu livro O que vemos, O que nos olha.


Um tempo para olhar as coisas que se afastam até perder de vista

Um tempo para sentir perder-se o tempo, até o tempo de ter nascido

Um tempo , enfim para perder-se a si mesmo.


Um beijo grande e até logo.
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No primeiro ano de pesquisa o trabalho tinha como título provisório Dizer Fazer. Inspirado no poema de Octávio Paz, contigo na correspondência anterior, tomamos esse título como primeiro despertar das questões que estavam por vir. Por isso, em muitos momentos nas próximas cartas, vocês vão reparar o aparecimento frequente desses dois verbos.

Bruno Levorin
Libertad 430, Santiago, Chile


14 de julho de 2016

Querido Haroldo.

Hoje faz muito frio no Chile. Durante a tarde choveu e escutando os pingos batendo no vidro da janela reparei que essa melodia de pequenos e sutis estalos, desenvolvido pelo encontro entre esses dois materiais translúcidos, é perfeita para fazer um animal sonhar e dormir. No final do dia o sol surgiu entre as nuvens negras e então um arco- íris apareceu. não me lembrava da última vez que havia me encontrado com um arco- íris. Imaginar que uma névoa de água ao se encontrar com uma porção de luz, projeta para o espaço cores, me parece como uma condução de afetos.

Essa troca de correspondências é a vontade por estabelecermos um lugar de encontro para as palavras que nos cercam nesse momento do trabalho, nesse momento de Dizer Fazer. É o início de uma trajetória onde sinto que um caminho já foi encontrado. Acredito que necessitarmos nos afundarmos por ai e falar com esse caminho.

Esse projeto me atravessa como um trem que mesmo quando passa por mim, continua fazendo barulho no fundo da memória. Um barulho de Villa-Lobos, um barulho caipira. Som presente na minha infância, na rua sem saída onde moravam meus avós paternos. Do muro que fechava a rua e que separava as casas de uma linha de trem, atravessava esse veiculo pela minha imaginação. Há um som que se repete, um mantra que me faz toda vez dizer e fazer se retroalimentar. Como se cada verbo fosse uma caixa de som, uma de frente para a outra, conduzindo juntas algo que gera constância e variação.

Tenho vontade de refletirmos por aqui as dimensões sobre como nos relacionamos com o Dizer em um primeiro momento. Penso que ai neste verbo está contido toda uma história de maus entendimentos que nos fizeram, junto de toda uma tradição moderna, separar mente e corpo. No contexto da dança, são raras as situações em que o discurso verbal, por exemplo, não é atacado ou mesmo excluído do espaço de

criação. Esse Fazer que muitas vezes a dança invoca, o Fazer que está condicionado por uma estética de movimento, interrompendo por vezes um momento de fala, me soa como uma ferida funda, repleta por uma casca que regenera mais casca e que impede com que algo cicatrize.

Dizer para mim não é só fundamental como necessário em um mundo onde os segredos constituem uma das maiores ferramentas de proteção dos estados totalitários. Essa ação que está intimamente ligada a escuta de si e do outro permite dar nome ao que precisa ser nomeado e conduzir afetos por uma descarga de sílabas que juntas podem constituir uma comunidade chamada texto.

Mas vamos um pouco mais. Me pergunto se Dizer não extrapola também a própria idéia de palavra. Penso que ele é como um fóssil do gesto, o primeiro chamado da vontade, a necessidade do homem em traduzir o pensamento em coisa, transportar algo de um lugar para outro lugar. Dizer é um processo de movimento, de por em movimento a condição do pensamento tomando-o como matéria para estabelecer uma imagem. Me lembro do texto de Didi-Huberman que me enviou, Quando as imagens tocam o real, onde o historiador cita o filósofo que diz ser um falso problema se perguntar: quem nasceu primeiro, a imagem ou a palavra? Apesar de concordar com Bergson sobre a falsidade do problema, quando li a primeira vez tive a vontade de responder que quem nasceu primeiro foi a ação. Dizer palavra/ Dizer imagem.

Fico por aqui amigo e espero que estejas bem.

Um abraço.
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Bruno Levorin
Libertad 430, Santiago, Chile

18 de julho de 2016


Querido Haroldo.

Hoje caminhei sozinho pela cidade. Fui como uma deriva colecionando pequenos detalhes de Santiago com os olhos. A cidade permanece fria e protegida pela cordilheira, uma comunidade de montes povoados por coberturas brancas. O céu é cinza como o de São Paulo o que me faz sentir certa nostalgia. Tive um mal sonho na noite que antecedeu essa andança e creio que ele foi o motivo que me fez despertar para rua. Sonhei com amores antigos. Sonhei que comia uma cabeça de camarão e ela dava a volta na minha língua. Sonhei que encontrava um menino machucado e recolocava a pele da ferida de sua perna, de volta ao lugar com as minhas mãos. Cantava uma música de cura para ele que não me lembro agora mas que remetia calma e sossego. A música me fez dormir no sonho junto com o menino. Depois tudo era subterrâneo e afundava.

Ainda falando sobre o Dizer, fico tentando farejar todas as suas potências performáticas. Desde a narração, a descrição, a legenda, o pensamento, a possibilidade de aprofundarmos os procedimentos que temos ainda mais, sendo mais restritos, mas precisos, estimulando a coreografia entorno da palavra. Acredito que o fato de já eliminarmos adjetivos, opiniões subjetivas, já fará com que a imaginação construa um caminho menos fadado a opinião e mais efetivo em termos de reverberação. Essa maneira de Dizer que estamos buscando, acredito, abre ao público a possibilidade de agregar o que não está dito na performance, fazendo-o possibilitar ao desenho apresentado, que não está colorido, cor e textura.

A paisagem que desejo promover estará permanentemente incompleta. Estou mexido com isso, com a vontade de não apenas dizermos o que queremos com uma obra mas também abrirmos espaços de fala, espaços onde o público também consiga dizer o que necessita, também se sinta responsável pela imagem que estamos criando juntos. Sinto

na incompletude das coisas essa potência.

Devo deixar claro para você que o Dizer não fala apenas daquilo que salta a boca, do som emitido e escutado. Ele diz também “anterior”. Um Dizerpensamento. Acho que Husserl pode nos ajudar nisso. Vou tentar retomar algum de seus textos para desenvolver melhor essa idéia de Dizerpensamento em uma próxima carta.

Há uma latência incrível entorno deste verbo que não cansa de se movimentar. O enxergo sempre tremulo.

Minha ignorância com o texto dramático, o texto teatral, deixa-me mais propício para experimentar a relação Dizer/texto em um outro lugar, com uma outra potência. Definitivamente o teatro nunca foi para mim uma referência, apesar de respeitar muito esse fazer. Prefiro agora me aprofundar no texto da psicanálise, na idéia da palavra ser corpo e a fala uma dramaturgia de acesso ao inconsciente. Não posso falar muito sobre o assunto pois admito que não o estudei suficientemente ainda, mas creio que uma possibilidade de responder a sua pergunta sobre a sintaxe possa nascer daí. A partir da livre associação suponho que podemos desenvolver uma travessia discursiva que possa nos desviar da vontade de legitimidade dos sujeitos via o discurso e nos encontramos em um espaço de vigília, entre mundos, entre estados, onde um arquivo do imaginário possa ser encontrado acidentalmente.

Assisti essa noite o filme do diretor português Gonçalo Tocha, É na Terra não é na Lua. Ele me diz algo, sinto que ele diz algo a todos nós. 
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Bruno Levorin
Cárcel 471, Valparaíso, Chile

22 de julho de 2016



Querido Haroldo.

Fui diagnosticado com Bronquite aqui no Chile. Tossia muito todos esse dias e decidi ir ao hospital. Fiquei na Clínica Valparaíso, na avenida Brasil, 2350, esperando por algumas horas a minha consulta. Durante esse tempo sentia o ar cortado e a preocupação afogando minha presença através da ansiedade. Observava ao meu redor a arquitetura do hospital que torna tudo passageiro, impermanente, e tinha a sensação de estar as vezes dentro e as vezes fora da primeira pessoa do singular. Me sentia parte e as vezes não daquela coreografia social com doenças em estado discreto.

Depois de algumas horas, Clarissa chegou para me acompanhar. A calma de Clarissa curou minha emergência. Nós alimentamos juntos uma conversa dentro da grande sala branca recheada por cadeiras e um bebedouro azul, distraindo o que havia de nervoso em mim e levando minha concentração para outros lugares distantes dos sintomas de algo que não sabia ainda nomear.

O médico disse Bronquite aguda com um estranho sotaque e me receitou uma lista
de remédios. Faziam mais de 10 anos que não tomava antibióticos. Essa droga forte faz meu corpo responde com violência a qualquer diferença diagnosticada. Não suporto tratar a diferença dessa forma mas parece que para me manter vivo neste momento, algo tem que morrer em mim. Uma bactéria, uma enxurrada de disparos emocionais, saudade, falta. Penso apenas em cuidado de sí. Cuidado de sí.

O seu projeto impossível chegou aqui com força. Pensei no título dele que me parece um programa, definido por Eleonora Fabião, artista que estou trabalhando aqui, como um procedimento composicional específico, um motor de experimentação. Uma quantidade qualquer de desenhos imprecisos para Marcel invoca muitos corpos a se

relacionarem e transbordarem afetos. O corpo de Marcel, o corpo desenho, os corpos imprecisos, o corpo qualquer, o corpo oceânico, o corpo travessia que leva algo de um artista para outro e que não tem objetivo mas atravessa e comunica. Estou seguro que Broodthaers gostaria de ver isso que já está acontecendo repleto por água e sentido.

Que bom ouvir sua descrição da cena do filme do Gonçalo. Não me lembro se foi você que me enviou mas espero que tenha sido. Risos. Essa proposta de descrição de tudo que ira ser filmado, cada detalhe, cada vontade, cada menoridade, que como você bem disse, é o ato de falha apresentado como prólogo de antemão, é um lindo procedimento que podemos desdobrar coreograficamente. Trago ai novamente a palavra impossível para a superfície, palavra escultura que no nosso campo tensiona forças e faz da imaginação matéria para realizar-se como possibilidade. Como te parece, de antemão, oferecermos um disparo imagético que fala sobre os nossos desejos e ao mesmo tempo falha como condição?

Falando agora, reparo que estou interessado em dois aspectos:

Ação e efeito de escrever sobre a forma em que se percebe algo. Scribere.

Descrever.

Exemplo 1: Descrever paisagem com o olhar, dando atenção para cada pequeno

detalhe, enriquecendo cada textura, cada volume que salta para fora do quadro.

Exemplo 2: Descrever com as palavras usando distintos modos de organização. Texto contínuo sem pontuação, lista, parágrafo, procedimento, sensação. Como se descreve uma sensação?

O tempo infinitivo.

O tempo infinitivo carrega consigo certeza e mistério. Essa impessoalidade e o lançamento futuro parece sacudir alguma vontade que ocupa infinitamente essa nomeação verbal. No infinitivo me sinto agindo na distancia de atuação do tempo. Sinto algo da ação que ainda não está mas que já aparece. Vejo aí espaço para completar, um futuro desconhecido. Não sei ainda dar exemplos disso mas sinto cócegas.

Faz sentido isso para você? Estou com vontade de convocar esse tempo verbal.

É isso amigo. Saudade de você e de tomar um café. 




No que é comum, falhar como a palavra 

São Paulo 2017



Vídeo e Edição: Haroldo Saboia
Dança: Felipe Stocco e Clarissa Sacchelli

Casa do povo - 2017


sinopse

No que é comum, falhar como a palavra’ pensa a linguagem enquanto construção e ficção, como matéria do mundo, disposta ao uso e a montagem. Ao tomar a sobreposição entre gesto e palavra, iniciada pela imaginação de distintas paisagens em escala menor, estabelece-se uma conversa sobre a fenda existente entre o que é dito por mim e o que é percebido pelo outro.

A movimentação é um procedimento coreográfico que é gerado na medida que é feito, uma prática que se propõe no gerúndio: o corpo como veículo e matéria própria da linguagem.

Descontinuidades. Proximidades. O fazer cego e junto. Lugar de invenção. Modos de relação com o outro. As mãos enquanto princípio de nomeação. A linguagem se realiza no seu exercício ou no seu efeito?
sobre a criação

Trabalho em vídeo dirigido por Haroldo Saboia e Bruno Levorin, fruto do processo de pesquisa da peça Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo, e da parceria entre os dois artistas que aconteceu durante o intervalo entre 2016-2018.


ficha técnica

Direção: Bruno Levorin e Haroldo Saboia Fotografia: Haroldo Saboia Coreografia: Bruno Levorin Performance: Clarissa Sacchelli, Felipe Stocco e Haroldo Saboia Local: Casa do Povo - São Paulo, 2017