Foto: Juliana R.
Galeria Jaqueline Martins, São Paulo - 2019
não sei por onde começar poderia ser um pixo nos muros do Cemitério da Consolação na cidade de São Paulo. É frase dita pelo artista Hudinilson Jr. em entrevista concedida a Ricardo Resende e Maria
Olímpio Vassão entre 2011 e 2012.
Já que espelhos partidos refletem muito
mais luas sob o chão, imaginemos então três realidades olhando para o satélite.
Essa performance é dedicada a Hudinilson.
Junto do desejo de discutir questões referentes à fragilidade e noções conectadas ao erotismo, não sei por onde começar é uma performance realizada a convite da Galeria Jaqueline Martins para a exposição individual do artista falecido Hudinilson Jr.
ficha técnica
Direção: Bruno Levorin Coreografia: Bruno Levorin Criação: Bruno Levorin, Gilmar Frausto, Lau e Maitê Lacerda. Interlocução e folha de sala: Bruno Mendonça Agradecimentos: Centro Cultural São Paulo, Sônia Sobral, Clarissa Sacchelli, Luan Banzai, Juliana R., Gustavo Ciríaco, Antônio Pedro Lopes, Jaqueline Martins e Hudnilson Jr.
Classificação: 12 anos.
Apresentações: Galeria Jaqueline Martins - São Paulo
Vídeo com extratos do trabalho:
Edição: Bruno Levorin
Galeria Jaqueline Martins - 2019
São Paulo, Março - 2021
No fim de cada capítulo entitulado como "encontro", um comentario aparecerá traçando questões pessoais e emocionais que contaminaram a produção de sentido de cada gesto.
O espaço está preenchido de gente. Junto dessa gente estão Fraus, Maitê e Lau. Fraus atravessa a sala segurando uma garrafa de água com a mão esquerda. Chegando em um determinado lugar, depois de percorrer uma distância de aproximadamente 7 passos, ele se agacha e derruba o líquido no chão. Ainda agachado, com as mãos, contorna o líquido que deseja se esparramar. Ele cria uma pequena lagoa, dando forma e escala para essa geografia que insiste em desmanchar.
Enquanto Fraus se levanta para deixar a garrafa de lado, encostada em uma das paredes do espaço, e se distanciar da lagoa, Maitê e Lau engatinham ao seu encontro. Ao perceber o movimento de aproximação dos dois, Fraus também começa a engatinhar até encontrá-los. O encontro se dá a mais ou menos 4 passos da água no chão. Os três se sentam, olhando uns para os outros.
Primeiro encontro: amarrar os sapatos.
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Estão ali os três, sentados e distantes da pequena lagoa. Calmos eles iniciam a retirada do cadarço de um dos seus sapatos. Após todos terminarem a ação eles criam um único cadarço com os três existentes, amarrando a ponta de um no fim do outro. Eles esticam as pernas que estão com os tênis frouxos sem as suas amarras, e juntando as solas dos pés criam uma composição triangular. Com o grande cadarço, eles dão voltas nos pés que se encostam, prendendo-os.
Devagar os três performers vão deitando no chão deixando apenas seus pés amarrados na verticalidade do plano. Um pouco antes disso, Fraus tira o celular do bolso da sua calça e deixa o aparelho do seu lado no chão. Eles todos ficam ali por 1 minuto em silêncio, respirando juntos com a imagem que construíram e disponibilizaram, cada momento conosco. É então que, do celular, chega uma música:
Stuck by this river
You and I
Underneath a sky that's ever falling down, down, down
Ever falling down
Through the day
As if on an ocean
Waiting here
Always failing to remember why we came, came, came
I wonder why we came
You talk to me...
Eles começam a se levantar e sem a ajuda das mãos tentam retirar juntos os sapatos amarrados. A tentativa é manter a forma que os sapatos estavam, só que dessa vez sem os pés - três sapatos em pé, juntos e amarrados por um único cadarço feito da junção de três cordões. A música continua...
And I reply
With impressions chosen from another time, time, time
From another time
O celular volta ao bolso de Fraus. Sentados, ainda devagar, eles novamente começam a engatinhar indo para um outro lugar. Este lugar está distante da lagoa e distante dos sapatos, criando uma relação triangular com os outros dois pontos de pouso.
*A música que toca através do aparelho celular é de composição do multiartista inglês Brian Eno e se chama By the River do álbum Works (1968-2005).
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Quando meu pai amarrava os meus sapatos.
Aprendendo a beijar
Outros homens
Como beijo o meu pai"
Gilberto Gil, Pai e Mãe
Com um calçador de madeira, todas as manhã de sábado dos anos 90, bem cedo eu era acordado pelo meu pai para vestir as minhas chuteiras. Naquela época, confesso, tinha medo da bola de futebol, e a felicidade de nenhuma forma era sobre estar nos gramados. Minha felicidade era deslizar meus pés sobre o calçado que meu pai colocava em mim e percebê-lo amarrar os meus cadarços. Eu ainda não sabia amarrar, não sabia dar laço. Foi observando que aprendi, assim como foi escutando que consegui, pela primeira vez,anos depois assobiar.
Não sei por onde começar é um trabalho dedicado às lembranças que tenho do meu pai. Primeiro homem que me apaixonei, primeiro homem que beijei e fui beijado. Foi notando sua delicadeza e carinho pelas pequenas coisas que aprendi sobre a calma e sobre estar presente em todos os momentos da vida, principalmente os menores.
Esse trabalho foi construído a partir de dois afetos primordiais. O primeiro é nostalgia e toda a força amorosa que esse conceito carrega. O segundo, que segue como complemento e continuação do outro, é melancolia. Em 2019, um ano antes da pandemia, sentia que o país onde nasci já não ia bem, e essa sensação de abandono me deixava frágil e vulnerável. Por algum motivo a ideia de vulnerabilidade sempre me lembrou meu pai. Nada me tira da cabeça que ele desistiu da vida quando, nos idos de 1996, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso comandava com toda força um projeto de privatização de muitas empresas estatais do país, ele, meu pai, seria muito jovem demitido de forma grosseira e obrigado a se aposentar na empresa onde trabalhava para não perder suas garantias trabalhistas - ele acabara de completar 45 anos. Isso fez meu pai chorar mais de uma vez na minha frente, e desde então, a sua vaidade e alegria como ser humano foi transformada em um silêncio angustiante. Evidentemente, ele não deixava transparecer isso para todo mundo, mas bastava eu sentar em seu colo e tocar o seu rosto para acariciá-lo que ele, sem palavras, me dizia isso com um olhar baixo e verdadeiro.
Quando ele morreu em 2014, no móvel do lado de sua cama, encontrei uma carta. Era uma pequena oração que descrevia como a raiva pulsava em seu corpo e fazia um pedido para que Deus pudesse tirar esse sentimento de dentro dele. A metáfora que ele usava, a matéria que ele utilizava para descrever tal situação, era o metal. Ele dizia sentir uma trança de metais fazendo força dentro dele e torcendo suas emoções mais nobres.
Por que ele nunca me disse nada?
Tem coisas que a gente não sabe dizer. Tem coisas que a gente não sabe por onde começar. Mais uma coisa nós sabemos. Tudo, absolutamente tudo, um dia, acaba.
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Eles param. Aos poucos vão encontrando apoio, encosto para a cabeça e corpo no corpo uns dos outros. Formam assim uma espécie de paisagem composta de três amantes e amigos, olhando os três para as pessoas que os observam nessa posição que, pela troca de peso, desenha intimidade.
Os sonhadores de Bertolucci, Band à Part de Godard...
posição amorosa número um
Na primeira situação, Maitê e Fraus estão sentados e apoiados. Maitê dá apoio para o tronco de Fraus que lentamente deixa o peso sobre a colega. Lau está deitado com a cabeça apoiada na perna direita de Fraus e com as mãos agarradas no joelho do performer. Ao instituírem a imagem permanecem nela e no tempo.
Fraus, devagar, vai trazendo sua mão direita, mão que está escondida na paisagem quando é vista frontalmente. A mão segue uma trajetória até a cabeça de Lau, formando uma espécie de escorço - técnica da pintura que confunde as distâncias - coreográfico no frame, e quando chega, tocando os cabelos de Lau, acaricia. Fraus não olha para a sua mão em nenhum momento. Todo o tempo os três estão olhando para quem os olha.
Após isso, eles lentamente desmancham a imagem indo para a próxima situação.
posição amorosa número dois
Fraus e Lau sentados se apoiam pelas pernas. Os dois estão com as pernas dobradas fora do chão mas com os pés no solo. Uma das pernas, a de Fraus, está cruzada sobre uma das pernas de Lau. Nesse cruzamento, joelho sobre joelho, Maitê apoia sua cabeça. Ela está deitada apenas com a cabeça apoiada nos amigos e com os cotovelos, antebraço e mãos no chão. Na realidade, sua mão direita se apoia no tornozelo esquerdo de Lau. Ela acaricia a meia do amigo como se não quisesse ser vista.
Eles permanecem respirando por alguns segundos nessa imagem e então Maitê, devagar, vai trazendo sua mão esquerda para próximo dela. Percorrendo lentamente com a própria mão o tecido da sua blusa na altura da sua barriga, discretamente vem trazendo o tecido durante o percurso, puxando-o. Ao chegar no limite possível para não desmoronar a imagem, Maitê ao invés de apenas voltar com a sua mão, levanta o membro, criando uma altura, mão e tecido, e devagar recua até a posição original - cotovelos e mãos no chão.
Maitê não olha para as suas mãos e percorre com o olhar uma trajetória que se inicia no canto esquerdo do quadro, indo até o centro de orientação da sua cabeça. Essa trajetória é percorrida apenas com os olhos deixando, em todo o momento, a cabeça estacionada no mesmo lugar.
Devagar eles desmancham a imagem e vão para a formação da última situação.
posição amorosa número três
Maitê e Lau sentados e apoiados pelo tronco. Maitê levemente torcida e de joelhos, Lau direcionado para Fraus com uma perna esticada e a outra dobrada. Deitado, Fraus apoia a cabeça sobre as coxas de Maitê. Lau e Maitê, devagar, escorregam suas mãos esquerdas para o peito de Fraus que, de boca aberta, respira profundo fazendo as mãos subirem e descerem junto do seu tronco. Eles permanecem aí por alguns segundos e então encerram a posição voltando para a primeira situação.
Vemos assim as três posições serem repetidas mais duas vezes até que, na última situação, Maitê, ao final, puxa com as mãos, delicadamente, Lau para trás e assim naturalmente ambos se deitam de costas para o chão junto com Fraus que, já estava quase deitado desde o começo desta última situação.
Nesse momento Fraus se levanta enquanto Maitê e Lau permanecem deitados. Ele caminha e para em pé, distante alguns passos dos amigos. Ele então levanta seu braço esquerdo um pouco acima da altura do seu ombro e aponta o indicador para a diagonal alta do espaço. Na altura da sua cintura, sua mão direita também estabelece uma forma com a mão que privilegia o dedo indicador. Assim, o performer fecha os olhos e lentamente, abaixando o braço esquerdo, vai tentando aproximar o indicador esquerdo ao da mão direita.
Enquanto isso, Maitê deitada, se aproxima ainda mais de Lau e em sua orelha cochicha coisas que não entendemos, mas conseguimos ouvir o murmúrio que é a trilha sonora da justaposição de ações.
Quando Fraus consegue efetivar o encontro dos indicadores, abre os olhos e olha para os dedos encostados. Olhando para frente, escolhe uma pessoa do público e se aproxima dela ainda com os dedos encostados. Já perto de alguém, o performer abraça o dedo indicador da mão direita, que permanece esticado, com a palma da sua mão esquerda. Olhando para a pessoa escolhida ele vai, devagar, puxando o dedo abraçado, fazendo com que este seja revelado aos poucos, até em determinado momento soltá-lo como estilingue. Ao terminar a ação, Fraus volta para sua posição inicial, deitando novamente junto com Maitê e Lau como se o tempo tivesse sido rebobinado.
Terceiro encontro: olhar para a lagoa juntos.
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Lau inicia um rolamento para o seu lado direito e Maitê e Fraus em postura de engatinhamento observam o amigo lentamente e de maneira frágil, rolar. Lau rola em linha reta até quase o meio do espaço, cerca de 4 passos. Ele para, devagar se levanta usando apenas a força dos braços e finaliza permanecendo em quatro apoios. Ele começa a engatinhar até a pequena lagoa que Fraus havia contornado logo no começo do trabalho. Nesse momento Maitê e Fraus fazem o mesmo, engatinhando se juntam a Lau até todos chegarem na pequena lagoa.
Diante da lagoa, os três performers, todos em quatro apoios, encostando o topo das suas cabeças umas nas outras, espiam para a água no chão. Eles permanecem nessa ação por um tempo curto mas perceptível até que Lau vira para a direção dos sapatos amarrados, abandonando o apoio junto dosoutros amigos. Maitê e Fraus seguem Lau na indicação e se posicionam, cada um de um lado do performer - todos ainda em quatro apoios. Os três, com as mãos no chão, colocam sua mão direita em cima da mão da direita da outra pessoa. Eles formam assim uma situação de três mãos sobrepostas.
Feito isso, eles começam a engatinhar carregando essa imagem das mãos sobrepostas até chegarem aos sapatos amarrados. Diante dos sapatos eles desmancham a imagem e iniciam a desamarração do cadarço para organizá-lo novamente em seus sapatos e calça-los.
Por último, para juntos ficarem em pé , constroem uma última imagem onde cada performer, puxando com a ponta dos dedos a pele do dorso da mão do outro, fazem uma espécie de escada/monumento até ficarem em pé.
Ao desmanchar essa imagem, depois de todos em pé, o trabalho se encerra com os performers saindo do espaço.
São Paulo, Agosto - 2021
Captação de Imagem: Camera de segurança da Galeria Jaqueline Martins.
Edição: Bruno Levorin
Galeria Jaqueline Martins - 2019
Texto crítico de Bruno Mendonça:
São Paulo, Agosto - 2021
A performance “não sei por onde começar” do coreógrafo e dramaturgista Bruno Levorin surge como um desdobramento de seus projetos anteriores - “aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo” (2018) e “Lasciva” (2019) - este dirigido em parceria com a artista Regina Parra.
A nova criação se inicia após um convite da Galeria Jaqueline Martins que neste ano está desenvolvendo uma série de desdobramentos a partir da exposição individual do artista Hudinilson Jr. A proposição da Galeria consiste em um diálogo transdisciplinar de uma nova geração com a obra do artista - falecido em 28 de agosto de 2013. Para a pesquisa, Bruno Levorin contou também com a parceria de Sonia Sobral - Curadora de Dança do Centro Cultural São Paulo - onde realizou uma residência artística. O Centro Cultural São Paulo possui um grande arquivo sobre Hudinilson Jr. Em uma de suas entrevistas, presentes neste arquivo, Hudinilson diz: “Não sei por onde começar”. A pequena porém poderosa resposta se torna o mote para a performance. Levorin a partir deste momento decide por não se debruçar necessariamente no arquivo do artista de uma forma metodológica mas sim de maneira mais sensível e afetiva. Sendo assim, como o próprio coreógrafo coloca: “Isso não significa que não me aproximei da obra dele no sentido formal, mas me aproximei inventando uma forma para aproximar.”
Hudinilson ao enunciar esta frase parece ter um interesse público como um sujeito-artista que sempre se colocou à disposição de viver profundamente esses estados de “política da dúvida” e “ética da fraqueza”. Sua vida-obra resistiu a esses imperativos que tentam minar essas potências. Bruno Levorin impactado com a força da resposta de Hudinilson imagina que a mesma poderia ser um pixo nos muros da cidade de São Paulo – obviamente reforçando aqui a urgência social e política da resposta do artista.
Foto: Juliana R.
Foto: Juliana R.
Jurgen Habermas apresenta concepções que se conectam com as ideias de Cerith Wyn Evans e ao próprio Hudinilson Jr. Habermas ao analisar a dúvida e a fraqueza como disrupções às noções de “dever” (Sollen/ Mussen), questiona o que podemos entender como uma racionalidade de fins, técnicas, estratégias, programas, metas e novamente imperativos. Já Nietzsche, irá propor a ideia de assombro na dúvida e na fraqueza, compreendendo-as também como potências de negação na manutenção do status quo. Para Nietzsche existe uma plasticidade na dúvida e na fraqueza, em detrimento ao que torna rígido. Quem não se deixa passar pela experiência da dúvida e da fraqueza não se deixa afetar pelas forças criativas desses estados, tornando-se ressentido, melindrado e tóxico. A inversão de valores retórica/mental no ocidente em relação à dúvida e a fraqueza tem relação com o que Nietzsche chamará de “psicologia cristã”. Esse processo de atrofia que se desdobra como ressentimento, melindre e toxidade, segundo Nietzsche, é justamente o que podemos observar também no poderoso texto da poeta Wislawa Szymborska ao receber o Prêmio Nobel de Literatura.
Szymborska escreve: [...] Um contínuo “não sei”. Torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos lutam pelo poder com um punhado de retumbantes palavras-de-ordem. Eles “sabem” e o que quer que saibam é o suficiente para eles, de uma vez por todas. Não querem descobrir mais nada, uma vez que isso pode reduzir a força de seus argumentos. Mas todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperatura necessária para a conservação da vida. Em casos extremos, bem conhecidos desde a antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à
sociedade. É por isso que dou tanto valor à pequena frase “não sei”. É pequena, mas voa com asas poderosas. Expande nossa vida para incluir espaços que estão dentro de nós, bem como as vastidões exteriores em que a nossa minúscula Terra pende suspensa. Se a minha compatriota Marie Curie nunca tivesse dito a si mesma “não sei”, na certa acabaria lecionando química em alguma faculdade particular para mocinhas de boas famílias e terminaria seus dias cumprindo esse trabalho, de resto perfeitamente respeitável. Mas ela não parou de dizer “não sei” [...]. Artistas, se autênticos, também devem repetir “não sei”. A dúvida é “assombrosa”. É um epíteto que oculta uma armadilha lógica. Ficamos assombrados, afinal de contas, por coisas que divergem de alguma norma conhecida e universalmente aceita, de um truísmo ao qual nos habituamos. Mas a questão é que não existe esse mundo óbvio. Nosso assombro existe per se e não se baseia numa comparação com outra coisa.
Todas essas proposições filosóficas e conceituais costuradas até aqui para mim estão presentes nos trabalhos de Bruno Levorin. Suas performances nos apontam que precisamos entender que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, seja no campo da linguagem, do corpo e da política. Isso abre para os desvios e as derivas. É mais sobre escrever em minúsculo do que em negrito. Arriscaria dizer que seus trabalhos são sobre uma espécie de “cultura-aprendiz”. A orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como “cultura-mestra”, deveria se tornar também uma “cultura-aprendiz”. A alma ocidental isolou-se, no campo do produtivismo, da eficácia, ou seja, ela também atrofiou.
Bruno Mendonça é artista-etc. Por meio de performances, zines e mostras, cria ambientes e plataformas – muitas vezes temporárias – para discutir e problematizar não só o meio artístico, mas também sexualidade, gênero, ou quaisquer categorias fixas da cultura. Utilizando-se de dispositivos variados, seus trabalhos criam uma espécie de rede discursiva e narrativa hipertextual. Suas performances transitam entre os formatos do spoken word, da lecture performance e do show e complexificam essa rede e as relações entre performance e performatividade.
Galeria Jaqueline Martins, São Paulo - 2019